28 de novembro de 2005

As Intermitências da Morte

José Saramago, 2005, Portugal

Saramago sempre nos presenteia com grandes absurdos. Absurdos impensáveis que estimulam a reflexão e ilustram o que há de mais oculto e cotidiano no espírito humano. Literatura!

Esse romance é como aqueles dilemas éticos para os quais parece não haver soluções. É genial porque escancara a fraqueza humana e nos faz reconhecer que somos uma raça, não de sábios justos, mas de pecadores em essência. Saber-se falho é conhecer-se humano... E “ainda que não se deva desculpar, perdoar sempre se pode” (p.115).

“No dia seguinte ninguém morreu” (p.11). Assim começa essa surpreendente história em que a morte deixa de matar para pregar uma lição aos homens. E é a partir desse evento que toda a densidade da obra se faz mostrar.

Como, então, reagem a sociedade e suas instituições? Quais são as reações dos indivíduos? Dessas questões surge uma fábula muito bem escrita, recheada com o melhor do humor e da ironia de Saramago. Traços que tocam bem na ferida de questões fundamentais, tais como Religião, Governo, Comunicação Social, Filosofia e Ciência.

Veja algumas sobre religião:

“A igreja, senhor primeiro ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras. [...] À igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso” (p.20).

“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca” (p.36).

Cada palavra do romance é essencial, demonstrando a imensa dedicação do autor em seu trabalho de articular significados e produzir uma literatura da mais alta qualidade. Ótima leitura!

“Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas” (p.65). “Porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados” (p.112).

9 de novembro de 2005

Meditações Sobre Filosofia Primeira (não-ficção)

Renato Des Cartes (René Descartes), 1641, França

Descartes ficou sumamente conhecido na história da Filosofia por buscar estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático, para o conhecimento da verdade.

Este tratado, apresenta, ao todo, seis meditações que expõe a progressão do pensamento cartesiano.

O autor inicia sua reflexão propondo a dúvida e o questionamento de tudo, para que, despidos dos preconceitos, possamos alcançar a Verdade. Segundo Descartes: duvidar para eliminar qualquer dúvida. Para tanto, os argumentos expostos indicam ‘enganos’ provocados pelos sentidos e a falta de certeza sobre a realidade vivenciada. Descartes chega à beira do solipsismo*, ao duvidar da existência do mundo material, questionando se a vida não passaria de um sonho ou devaneio.
“Quid igitur erit verum? Fortaffis hoc unum, nihil effe certi. // Que será, então, verdadeiro? Talvez isso somente: nada é certo” (p.42 // p.43).

Nesse momento surge sua primeira constatação (que tantas vezes já foi repetida através do lugar-comum: ‘penso, logo existo’), qual seja, apesar de todas as dúvidas, a mente percebe a impossibilidade de ela própria não existir. Nada, “nunca poderá fazer, porém, que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo” (p.45).

E segue com estas belas palavras: “Eu, eu sou, eu existo, isto é certo. Mas por quanto tempo? Ora, enquanto eu penso, pois talvez pudesse ocorrer também que, se eu já não tivesse nenhum pensamento, deixaria totalmente de ser. [...] Sou, porém, uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente. Mas, qual coisa? Já disse: coisa pensante” (p.49).

Daí pra frente, Descartes intenta provar a existência de Deus, e esse é o ponto chave de sua filosofia, para escapar da idéia solipsista. “Devo examinar se há um Deus e, havendo, se pode ser enganador. Pois, na ignorância disso, não parece que eu possa jamais estar completamente certo de nenhuma outra coisa” (p.73).

A obra prossegue examinando essas questões e extraindo conclusões através desse método que se pretende rigoroso e matemático. Em resumo, o método cartesiano consiste em algumas regras:

{{1. A primeira regra é a evidência: não admitir "nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço evidentemente como tal". Em outras palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção" (preconceitos) e só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho a menor oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o que salta aos olhos, é aquilo de que não posso duvidar, apesar de todos os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar de todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas quadragenária".
2. A segunda, é a regra da análise: "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis".
3. A terceira, é a regra da síntese: "concluir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos mais complexos".
4. A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido"}}.
(Regras, de 1 a 4, retiradas do site http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htm)

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*Solipsismo - Doutrina que considera o eu como única realidade no mundo. Em outros termos, nada existe, exceto a sua mente; ela seria a única realidade da qual se possui certeza absoluta.

18 de outubro de 2005

Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa, 1956, Brasil

Qualquer coisa que aqui for dita sobre essa obra não alcançará o infinito espectro de sua grandeza. Analisá-la é esvaziá-la. Com certeza, o que vale então é tentar expressar um pouquinho da particular relação entre leitor e texto, a experiência estética da leitura:


Poesia!

'Estória' humana. Prazer e descoberta a cada palavra. Uma leitura espelho do fundo de nossa alma.
Rosa cria em cima da maior criação humana: a linguagem. Dela vem toda a beleza; na linguagem é que somos e fazemos, nela reside o humano. E esse Grande Sertão é demasiado humano...

Livro pra se viver e ler, já que é na lida que a coisa está... não no fim, nem no começo.

"Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. [...] Viver não é muito perigoso?" (p.51).

3 de setembro de 2005

Contos Amazônicos

Inglês de Souza, 1893, Brasil

Ao todo são nove histórias que proporcionam ao leitor um mergulho no universo dos brasileiros que habitavam a região amazônica no século XIX.

O autor é considerado o pioneiro da escola Realista-Naturalista no Brasil e, nesse sentido, a obra chega a ser um documento histórico; literatura que transmite vivamente a linguagem, o vocabulário, as condições de vida e os costumes dos 'amazônicos'. O olhar de Inglês de Souza se volta, principalmente, aos desfavorecidos; brasileiros oprimidos pela grandeza da floresta e que dela se valem para sobrevivência. E é dessa pobreza e simplicidade, além da estonteante fauna e flora, que surge a grande riqueza do livro: a cultura particular de um povo.

Um dos traços culturais recorrentes na obra é o sincretismo entre a religiosidade católica, crendices, bruxaria e feitiçaria, fato marcante da cultura brasileira como um todo. As famosas lendas amazônicas não são esquecidas, como a do Boto que se transfigura em homem para raptar moças e levá-las para o fundo das águas.

Vale destacar a profunda sensibilidade do autor nessa bela análise psicológica do caboclo da selva:

“É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma em um apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto. [...] O caboclo não ri, sorri apenas” (p.25).

Do lado da História Geral, a Cabanagem, revolta social mais importante do período da regência, desenrolada no Pará e cujos integrantes eram da camada mais pobre da população, é retratada em Contos Amazônicos de uma forma interessantemente imparcial (vale conferir no último conto, O Rebelde). Em outro ponto, Inglês de Souza ilustra a repercussão da Guerra do Paraguai no norte paraense, onde o alistamento “voluntário” de combatentes transtornou a população. “O povo comentava o caso, analisava a fisionomia dos novos soldados, daqueles heróicos defensores da pátria, carneiros levados em récua para o açougue” (p.33).

Histórias de tristeza, resignação, luta, fantasia e folclore. Bom texto, leitura rápida e interessante.

30 de agosto de 2005

Um certo capitão Rodrigo

Erico Verissimo, 1970, Brasil

Um forasteiro, capitão Rodrigo Cambará, chega ao povoado de Santa Fé, no Rio Grande do Sul e esse evento transforma a rotina da cidade.

Rodrigo é um homem bastante interessante – valentão, de bom coração e mulherengo. Animado e falastrão, encanta as pessoas com seu charme e suas histórias, na mesma medida em que cria inimigos entre os poderosos da cidade. Diferente, independente e livre, apresenta uma postura que encoraja a insubmissão, uma ameaça à família Amaral que comanda a região.

O amor à vida é a nota mais marcante em Rodrigo. Ele não sonha com um paraíso celeste, tampouco se preocupa com a morte. Para ele, o importante é o gozo do momento presente. O próprio padre Lara reconhece uma força de caráter nesse ateísmo e acaba gostando do rapaz.

A permanência de Rodrigo em Santa Fé é definida quando conhece Bibiana Terra. Dessa paixão surgem três filhos, Bolívar, Anita e Leonor.

Homem de guerras e andanças, Rodrigo não se acostuma à vida familiar. Ele se entrega à bebida, ao jogo e a outras mulheres. A vida do capitão definha.

Enquanto isso, Bibiana recorda sua avó, Ana Terra, “que costumava dizer-lhe que o destino das mulheres da família era fiar, chorar e esperar” (p.109). Ela ama o marido e acaba suportando todos os sofrimentos para não perdê-lo.

Mas surge um novo despertar: estoura uma guerra. Rodrigo, condecorado por sua valentia em batalhas anteriores, se junta ao líder Bento Gonçalves e luta ao seu lado na Revolução Farroupilha, que, historicamente, durou dez anos nas terras do sul. Assim ele cumpre uma tradição familiar, não morrer numa cama, mas sim na ponta de uma espada ou com o pipoco de uma bala.

Com seu apuro literário, Erico Verissimo nos transmite a atmosfera e os valores da época. A escravidão, a submissão feminina, a marcante presença da religião e a proliferação de idéias liberais originadas no velho mundo são exemplos interessantes. Sua ficção também ilustra marcantes aspectos históricos do país, como a política imperial, o período de regência de Dom Pedro II, o início da imigração européia para o sul do Brasil e a Revolução Farroupilha.

Um livro muito bem escrito, uma história universal e uma estética envolvente estão à disposição do leitor que se debruçar sobre as páginas de Um certo capitão Rodrigo.

A obra é o terceiro episódio do primeiro volume de O Continente, parte integrante da trilogia O Tempo e o Vento, grande trabalho do escritor gaúcho. Contudo, pode ser lido como um texto independe, sem riscos de incompreensão.

19 de agosto de 2005

O Príncipe (não-ficção)

Nicolau Maquiavel, 1513, Itália

Clássico da política, O Príncipe é um tratado sobre a arte do bem-governar. Maquiavel mostra vasta experiência e profundo conhecimento; todas suas idéias, regras e conclusões são colocadas ao lado de fatos históricos que atestam a argumentação.

Quem quiser história encontrará boa fonte sobre grandes estadistas, mas é na psicologia política que está o "pulo do gato" de Maquiavel.

Tipos de principados e seus regimes, tipos de armadas, ética e comportamento de um príncipe, estes são alguns dos temas abordados pelo autor que pretende elaborar um denso projeto que permita a perpetuação do poder de um príncipe.

Cético quanto à natureza humana – “Dos homens, em realidade, pode-se dizer genericamente que eles são ingratos, volúveis, fementidos e dissimulados, fugidios quando há perigo, e cobiçosos” (p.80) – Maquiavel chega a atropelar a ética em alguns (vários) momentos; para ele, os meios justificam o fim: manter-se no poder.

Muitos julgam a obra como modelo imoral de prática do poder (o uso da força é ostensivamente defendido pelo autor que também acredita existir um bom uso para a crueldade), no entanto, seu mérito é expor cruamente a relação do poder com a força (questão fundamental da natureza humana) e o esboço da já mencionada psicologia política.

O Príncipe é um dos marcos inaugurais da literatura política.

O quão louvável é que um príncipe honre a sua palavra e viva de uma forma íntegra, cada qual o compreenderá. Todavia, a experiência nos faz ver que, nestes nossos tempos, os príncipes que mais se destacaram, pouco se preocuparam em honrar as suas promessas; que, além disso, eles souberam, com astúcia, ludibriar a opinião pública; e que, por fim, ainda lograram vantagens sobre aqueles que basearam as suas condutas na lealdade” (p.84).

18 de agosto de 2005

Inferno

Strindberg, 1896, Suécia

Um relato autobiográfico deste autor sueco que, por um lado, trabalhou incansavelmente para produzir ouro através de técnicas alquímicas e, por outro, enfrentou as penas da doença mental.

Loucura, paranóia e sofrimento misturados com religião, filosofia e ciência. História de sua vida enquanto deseja a morte. Tudo através de um texto de muita vitalidade e bastante impressionante quando trata do terror que se passa em sua mente. Um prato cheio para profissionais da psicopatologia.

A primeira parte do relato se passa em Paris, onde Strindberg mergulhou na química e na alquimia em busca do metal amarelo. Esse mergulho o afastou de sua mulher e filha, tornando sua existência profundamente solitária e ensimesmada. Fracassos e dívidas o expulsam da França e o levam de volta ao seu país natal, onde reencontra sua filha de dois anos e experimenta uma nova vida em família. Não há paz para ele, em qualquer lugar que se encontre, Strindberg é torturado pela doença; doença que ele crê ser fruto de poderes invisíveis. Para ele, o inferno é a vida na Terra!

Uma leitura bastante interessante, escrita por um dos maiores gênios suecos do séc XIX. Vale dizer que o autor é muito admirado por Kafka.

Em mim o outono e lá fora a primavera” (p.86), aí está uma frase que resume bem o estado de espírito do autor e dessa obra em particular.

12 de julho de 2005

Drácula

Bram Stoker, 1897, Irlanda

Obra prima da literatura universal, esse romance gótico definiu o arquétipo do vampiro que ainda hoje povoa o imaginário do terror.

Um livro muito bem escrito. À maneira vitoriana, possui uma linguagem bastante formal, solene e polida; densidade nas palavras que não chega, nem por um momento, a prejudicar a simplicidade do raciocínio.

O poder descritivo do autor é uma qualidade que favorece ao suspense e os fatos são muito bem amarrados, sem furos (haja criatividade!). Stoker também se revela uma pessoa de sensibilidade e inteligência privilegiadas ao expor minuciosamente seus personagens, temperando sua obra com belíssimos insights sobre a natureza do comportamento humano.

Literatura de entretenimento sim. Contudo, não se trata de um livro banal. Muito conhecimento, inclusive sobre a época em que foi escrito, aflora de suas páginas. Ótima leitura!

"Quem nunca passou por todos os terríveis sofrimentos da noite não pode avaliar com exatidão como são doces e sutis para o nosso coração e caros para os nossos olhos os primeiros clarões do alvorecer" (p.53).

2 de julho de 2005

Tempus Fugit

Rubem Alves, 1990, Brasil

Seleção de crônicas deste grande pensador brasileiro. Literatura que não prima tanto por sua sofisticação estética, mas brilha pelo conjunto temático, pela reflexão proposta e pela sinceridade das palavras.

Pequenos escritos que versam sobre a felicidade, a tristeza, vida e morte, amor, pensamento e sabedoria.

Ao descrever um texto, sempre ficamos em débito com sua profundidade e multiplicidade, por isso escolhi essas poucas palavras para que esta dívida não se amplie. Resta recomendar a leitura... Não em honra ao autor, mas em consideração ao leitor.

E, em consideração à minha memória, quero registrar aqui o meu desejo de sempre reler a crônica intitulada Namorados (magnífica!).

Tempus Fugit também é o nome do primeiro dos textos da obra, do qual extraio um breve e belíssimo momento. “Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza do momento que nunca mais será...” (p. 11).

29 de junho de 2005

Os Estabelecidos e os Outsiders (não-ficção)

Norbert Elias & John L. Scotson, 1993, Alemanha - Inglaterra

“Numa pequena cidade da Inglaterra, as tensões são múltiplas entre os habitantes estabelecidos e os forasteiros outsiders, considerados como estrangeiros que não partilham os valores e o modo de vida vigentes. São mantidos à distância no cotidiano, afastados dos locais de decisão, dos clubes e das igrejas. E essa rejeição se perpetua por duas ou três gerações, preservada pelos boatos e pelas fofocas” (contra-capa da edição brasileira, 2000).

Duas comunidades em conflito e um tipo de exclusão social que tem pouco a ver com as tradicionais realidades empíricas do senso comum, sejam elas econômicas ou de comportamento – ambos grupos se enquadram numa mesma “classe econômica”, são compostos por compatriotas e até os níveis de criminalidade das duas regiões são equivalentes. Então, porque um grupo se considera melhor, mais “limpo”, e consegue estigmatizar e construir uma fantasia coletiva que exerce visível coerção social ao considerado grupo “sujo”, dos piores?

Estudando uma pequena comunidade (micro) os pesquisadores pretendem visualizar aspectos gerais do comportamento social (macro). O próprio Elias avalia a exclusão como uma constante universal, daí a importância de uma “Sociologia das Relações de Poder” para que se possa propor um modelo teórico que ajude a explicar como ela (exclusão) se desenvolve nas sociedades.

Os Estabelecidos e Outsiders apresenta um ensaio introdutório no qual o autor alemão consegue amarrar os aspectos principais da investigação, construindo importantes contribuições teóricas para a sociologia. É um texto mais denso, claro e direto; saborosa leitura instrutiva para todos.

Já em seu desenvolvimento, a obra representa uma verdadeira aula de pesquisa, deixando evidente a importância da sensibilidade, intuição e criatividade do investigador para a produção do conhecimento em ciências sociais.

6 de maio de 2005

Filosofia da Ciência (não-ficção)

Rubem Alves, 1993, Brasil

Um texto magnífico que elabora reflexões sobre a ciência, desmistificando seu suposto caráter de superioridade. Análise e história do conhecimento acessível a todos e escrita de forma brilhante. Rubem Alves prova que as questões mais complexas não precisam ser abordadas sob o prisma da obscuridade; clareza e simplicidade são os atributos mais valorizados pelos sábios. E assim se apresenta todo o texto: claro e simples.

A questão central da exploração do autor é: “Todo o mito é perigoso porque induz o comportamento e inibe o pensamento. O cientista virou um mito. [...] Existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. [...] Antes de mais nada, é necessário acabar com o mito de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor do que as outras” (cc).

O livro é uma leitura estupenda para qualquer um que se dispõe a uma atitude filosófica e tenha apreço ao espírito crítico. Transcrevo aqui uma passagem extremamente racional e igualmente poética acerca da eterna busca da ciência: “No fundo estamos brincando de faz-de-conta. Fazemos de conta, para efeitos práticos, que um modelo é verdadeiro. Mas nunca há como dizer quando é que temos a verdade em nossas mãos” (p. 49).

A mensagem final ilustra o que talvez seja o ponto crítico para uma mudança na relação da ciência com a sociedade. Segundo o autor, “já que a ciência não pode encontrar sua legitimação ao lado do conhecimento, talvez ela pudesse fazer a experiência de tentar encontrar seu sentido ao lado da bondade” (p. 217). Ele ainda cita Brecth: “Eu sustento que toda finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana”.

A seguir estão alguns tópicos que podem ser, além de instrutivos, indicadores da brilhante argumentação do autor. Todos eles são, total ou parcialmente, recortes do texto do autor e de seus citados.
  • A ciência é uma especialização, uma hipertrofia de capacidades que todos têm.
  • O poder do pensamento é o poder de simular o real.
  • A resolução de problemas passa pela construção de modelos.
  • O modelo presume a ordem.
  • A ordem fascina o homem e é a inspiração da ciência.
  • Uma lei ou teoria é um modelo da ordem.
  • A ordem não está presente somente na ciência; também está na magia, na religião, no senso comum...
  • A exigência da ordem se fundamenta na própria necessidade de sobrevivência.
  • A inspiração da ciência não é um privilégio dos cientistas. A ordem se inclui nos níveis mais primitivos da vida.
  • Conhecer é reduzir o desconhecido ao conhecido.
  • Não conhecemos coisa alguma senão o nosso modo de conhecer as coisas.
  • Ciência: palpites, conhecimento provisório.
  • Ensinar ciência é ensinar modelos.
  • Teorias são enunciados acerca do comportamento dos objetos de interesse dos cientistas.
  • Leis são enunciados da rotina. Elas se interessam pela ordem, pela regularidade, pelo comum; e o comum é o universal.
  • Parar nos fatos nos deixa aquém da explicação.
  • Os fatos, em si mesmos, não oferecem iluminação; o problema científico é o da interpretação.
  • Interpretar é dar (criar) sentido.
  • Um sistema científico é sempre resultado de uma atividade criativa.
  • A construção de teorias depende da imaginação, da intuição.
  • Sem a totalidade, a compreensão não existe. Mas a totalidade não é dada pelos fatos. Ela deve ser intuída, inventada.
  • A verdadeira descoberta não é um processo estritamente lógico.
  • Não conhecemos; só podemos fazer palpites.
  • Emoção e objetividade não se opõem. É a emoção que cria o objeto.
  • A ciência é produto de seres humanos engajados na fascinante aventura de viver suas vidas pessoais.
  • Na formação das teorias entra sempre uma pitada de fé: uma crença na continuidade e homogeneidade do real ou na unidade do passado e do futuro...

4 de maio de 2005

A Ordem do Discurso (não-ficção)

Michel Foucault, 1970, França

Trata-se da aula inaugural que Foucault proferiu quando assumiu a cátedra vacante no Collège de France. Um texto brilhante que elenca os “procedimentos de controle e de delimitação do discurso” e expõe a “relação entre as práticas discursivas e os poderes que as permeiam” (cc).

Em um segundo momento, o filósofo aponta a direção que pretende dar aos estudos dessa área, ilustrando as linhas para a pesquisa que intentava desenvolver (e o fez) nos cursos do Collège de France.

Mas, como comentar esse texto, na medida em que o próprio Foucault, em seu pronunciamento, anuncia que o comentário é um desses ‘procedimentos de controle’? Em suas palavras:

“O comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro.
Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito” (p. 25).

Resta então a indicação da leitura da obra... o ideal é deixar de lado esses magros comentários como os que aqui (nesse blog) se lê.

28 de abril de 2005

Cultura: um conceito antropológico (não-ficção)

Roque de Barros Laraia, 1986, Brasil

O trabalho de Laraia pretende introduzir o leitor ao conceito antropológico de cultura (dado essencial para melhor compreensão da natureza humana). Através de uma profusão de exemplos, surge uma descrição histórica sobre o desenvolvimento do tema – idéias sobre a origem e teorias modernas da cultura.

O texto dispõe de argumentos que desconstroem idéias como o determinismo biológico, sexual ou geográfico, além do conceito de evolucionismo cultural. Segundo Laraia, “tais crenças contém o germe do racismo, da intolerância, e, freqüentemente, são utilizadas para justificar a violência contra os outros” (p. 73).

Na segunda parte do livro, o antropólogo também ilustra como a cultura opera nas sociedades, condicionando a visão de mundo do homem e interferindo no seu plano biológico. Citando Geertz, Laraia mostra que o homem é “não apenas o produtor da cultura, mas também, num sentido especificamente biológico, o produto da cultura” (p. 57).

Ótima leitura, um texto bastante instrutivo!

27 de abril de 2005

Sobre o Tempo (não-ficção)

Norbert Elias, 1984, Alemanha

O que é o tempo? Qual sua definição mais coerente? A partir dessas perguntas, surge um ensaio intrigante que tenta contribuir para a elaboração de um conceito adequado sobre o ‘tempo’. Conceito esse que avalia as tradições físicas e filosóficas que já fizeram essa busca, e desmistifica a departamentalização das respostas que separam o homem (social) da natureza (física). Outra grande qualidade do texto é trazer à luz – com bastante propriedade – novas reflexões sobre diversas áreas do conhecimento humano.

O sociólogo alemão afirma que o tempo não existe em si, não é um dado objetivo à disposição do ‘sujeito do conhecimento’, tampouco se trata de uma elaboração subjetiva de cada indivíduo. Segundo ele, “o tempo é, antes de tudo, um símbolo social, resultado de um longo processo de aprendizagem” (cc).

Através de uma exploração sociológica, o livro “formula a questão muito geral de saber com que objetivo os homens necessitam determinar o tempo” (p. 13). No contexto dessa proposta, Elias reflete, recorrentemente, sobre o aspecto fundamental do ‘processo civilizador’; processo “que contribui para formar os hábitos sociais que são parte integrante de qualquer estrutura de personalidade” (p.14).

Não há como afastar, daquilo que se percebe como o tempo, as influências significantes da linguagem e de uma cultura herdada. Esse é o alicerce central da argumentação do autor.
Nas palavras de Elias: “O estudo do ‘tempo’ é o de uma realidade humana inserida na natureza, e não de uma ‘natureza’ e uma realidade humana separadas” (p. 79).

“Repetimos: a auto-regulação ‘temporal’ com que deparamos em quase todas as sociedades avançadas não é um dado biológico, ligado à natureza humana, nem tampouco um dado metafísico, ligado a algum a priori imaginário, porém um dado social, um aspecto da evolução social da estrutura de personalidade, que, como tal, torna-se parte integrante da individualidade de cada um” (p. 119).

A obra não é de leitura fácil, apresenta uma erudição que pode incomodar ao leitor comum. Mesmo assim, mesmo não alcançando a totalidade do entendimento, não se pode negar um aprendizado interessante, um novo entendimento que desvia o olhar – sobre o tempo – do lugar comum.

24 de abril de 2005

Antônio & Cleópatra

William Shakespeare, 1607, Inglaterra

Mais uma tragédia desse grande dramaturgo inglês. Essa, baseada em fatos históricos: o envolvimento amoroso do grande líder militar romano, Marco Antônio, e a rainha do Egito, Cleópatra.

Por trás de tudo, o palco político da disputa pelo poder no Império. O triunvirato romano – Otávio (filho de Júlio César), Marco Antônio e Lépidus – se dissolve, e a contenda pelo poder supremo se transforma no principal combustível dessa tragédia.

Paixão e política são temas explícitos dessa obra de arte da literatura shakespeariana.

20 de abril de 2005

Alice no País das Maravilhas

Lewis Carroll, 1865, Inglaterra

Um texto leve e saboroso e narrativa que apresenta cenários oníricos e surrealistas, além da profusão de situações nonsense. Com esses elementos, o autor elabora um livro de linguagem infantil, mas que deve ser apreciado por todos que gostam de literatura.

Questões profundas como “quem sou”, “pra onde vou”; e avaliações sobre o tempo, a sociedade e a fluidez da realidade temperam essa história fantástica.

Em linha com a literatura infanto-juvenil, estão presentes várias “lições” sobre a arte de viver; tudo para o deleite intelectual dos leitores de todas as idades.

Sonho, imaginação ou inconsciente? Tudo se encaixa na análise desse texto que subverte a linearidade da percepção que acreditamos possuir.

Não é um livro pra ser devorado de uma vez. Deve-se ler com a calma, a atenção e a curiosidade que as crianças tão bem demonstram.

“Por quê? – Disse a lagarta. Era outra pergunta intrigante” (página 62).

21 de março de 2005

Macbeth

William Shakespeare, 1600, Inglaterra

A peça mais maldita de Shakespeare. Um texto da Editora Objetiva constata que em Macbeth: “Mata-se por amor, mata-se por poder, mata-se por honra, mata-se por revanche. É a violência em seu estado bruto”.

A descrição segue: “Tomando como ponto de partida um fato histórico ocorrido na Escócia em 1040, Shakespeare revela toda sua maturidade como escritor e constrói uma fascinante síntese da ambição humana. O livro narra a trajetória do general Macbeth. Um homem brilhante e corajoso, mas que torturado pela ambição, assassina o rei Duncan I para se tornar o novo monarca da Escócia. Quase duas décadas depois, o destino acerta suas contas e Macbeth é morto por Malcolm Canmore, filho do antigo rei”.

28 de fevereiro de 2005

Os Últimos Dias de Pompéia

Edward George Bulwer-Lytton, 1834, Inglaterra

Os Últimos Dias de Pompéia é uma das obras mais conhecidas da ‘chamada’ literatura universal. Esse romance histórico elabora uma reconstrução do passado, baseada nas mais rigorosas documentações acerca da cultura, dos costumes e dos dados arqueológicos reunidos pelos trabalhos nas ruínas da cidade romana de Pompéia. Escusado dizer que Pompéia foi devastada pela erupção do Vulcão Vesúvio, no ano 79 d.C.

Uma história envolvente e instrutiva que revela as leis e os costumes da época; ensina sobre a arquitetura romana do período; ilustra a mistura e propagação das culturas egípcia, grega e romana; e traz uma idéia de como foi o início da difusão do cristianismo entre os povos ‘considerados’ pagãos.

21 de fevereiro de 2005

Hamlet

William Shakespeare, 1600, Inglaterra

Poesia, filosofia, metalinguagem. Corrupção, vingança, morte. Complexidade, genialidade, humanidade. O que se pode dizer dessa obra de arte magnífica? “Palavras, palavras, palavras”. Calo-me, assombrado... Ou melhor, transcrevo uma pontinha de toda essa sabedoria.

Sobre a morte: “Nesses momentos, o verme é o único imperador. Nós engordamos todos os outros seres para que nos engordem; e engordamos para engordar as larvas. O rei obeso e o mendigo esquálido são apenas variações de um menu – dois pratos, mas na mesma mesa; isso é tudo” (Hamlet, ato IV, cena III).

19 de fevereiro de 2005

O Leopardo

Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, 1958, Itália

O romance narra a história da decadência da nobreza italiana frente à ascensão da burguesia. Os fatos se desenrolam a partir de maio de 1860, tendo como centro de gravidade o Príncipe Fabrizio e sua família.

Muito bem escrito, o livro possui uma força descritiva que chega a nos transportar para os acontecimentos. Um grande trunfo da obra é a força representativa de seus personagens. Como avalia Ruy Goiaba, eles “conseguem funcionar como símbolos das classes a que pertencem sem deixar de ser redondos, complexos”.

No texto surge uma contumaz crítica às revoluções sociais. Quase sempre realizadas pela elite, pouco subvertem a ordem contra a qual combatem. Um trecho: “E que irá acontecer então? Ora! Negociações ao ritmo de descargas inofensivas. Depois tudo ficará na mesma, embora tudo tenha mudado”. E, mais adiante: “Não há dúvida; tudo ficou como dantes, melhor mesmo”.

Além do contexto histórico e social, O Leopardo não deixa de trazer conflitos psicológicos: paixões reprimidas, luxúria e religiosidade, o confronto com a morte. Ótima leitura!

15 de fevereiro de 2005

Admirável Mundo Novo

Aldous Huxley, 1932, Inglaterra

A obra é uma fábula de uma provável sociedade do futuro. Nesse mundo, a tentativa de se acabar com os conflitos, com a dor e a angústia humana produz uma comunidade alienada, que nunca enfrenta a realidade e é incapaz de um pensamento livre.

Nele, as crianças nascem no laboratório, a educação é baseada no condicionamento permanente e para qualquer problema emocional existe o “soma” – a droga da felicidade produzida e distribuída pelo governo. Qualquer semelhança com nossa sociedade não é mera coincidência...

Em “Admirável Mundo Novo” (expressão retirada de A tempestade de Shakespeare – a intertextualidade com o dramaturgo é intensa) as classes sociais são produzidas biologicamente, controladas em castas, qualquer possibilidade de conflito é anulada. Além disso, o comportamento consumista é louvado, é ele que, segundo os governantes, faz a roda do mundo permanecer em movimento.

A recorrência da palavra “pseudo” é um traço marcante do texto; quase nada é natural – desde o pseudo-sangue, para a melhor saúde, ao pseudo-couro-legítimo, para a moda da época. Chega-se assim a uma pseudo-realidade; as experiências vividas são provenientes de um simulacro de sensações, seja no cinema sensível ou nas viagens proporcionadas pelo “soma”. A felicidade permanente deixa o homem numa escravidão perpétua, dominado pelo sistema que ele próprio criou.

Huxley nos presenteia com um grande livro, uma leitura simples, um pensamento questionador. Ele nos faz refletir sobre o nosso futuro, pensar naquilo que queremos para a humanidade e naquilo que fazemos para promover ou subjugar a liberdade humana.

Muitas obras posteriores sofrem influência temática desta narrativa, dentre elas podemos citar: 1984, de Orwell, e os filmes: Alphaville de Godard, Blade Runner de Scott, até o recente Matrix.

4 de fevereiro de 2005

Primeiras Estórias

João Guimarães Rosa, 1962, Brasil

Essa é mais uma daquelas obras de arte, únicas. Não pode o leitor pretender absorver o todo de seu significado; a interpretação é particular e fragmentária, as descobertas se acumulam a cada releitura. Trata-se de um estilo sofisticadíssimo, de leitura não muito fácil, mas como, acertadamente, afirma Paulo Rónai na introdução da edição de 2001 da editora Nova Fronteira: “Por menos que se pegue dessa profusão barroca, o leitor médio ainda pegará bastante para ceder ao encantamento”.

Rosa é um dos grandes gênios da literatura brasileira, e este livro é apontado pelos “entendidos” como o melhor para iniciação em sua obra.

Primeira Estórias é uma coletânea de contos de temática variada – psicológica, trágica, fantástica, autobiográfica, anedótica, filosófica... – , saborosas ‘estórias’. Além do caráter universal de seus textos, Rosa planta palavras novas que, ao desabrocharem em nossos olhos, ampliam os significados e a compreensão das coisas. Pura poesia em prosa.

21 de janeiro de 2005

Noite na Taverna

Álvares de Azevedo, 1855, Brasil

“Contos fantásticos” (classificação do próprio autor) amarrados pelo contexto em que se inserem: os personagens Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann, reunidos em uma taverna, ao sabor do vinho e do tabaco, narram suas histórias.

A atmosfera do livro é sombria, a escuridão prevalece. O sexo, a mulher e a morte são elementos comuns a todas as narrativas. A perdição, aliada ao demônio, e a inexorabilidade do destino acentuam o caráter trágico dos personagens. Necrofilia, antropofagismo, traição, assassinato e incesto desfilam nas páginas de Noite na Taverna.

Apesar de uma paisagem predominantemente européia, especialistas afirmam que o autor, a partir dessa obra, elabora uma das matrizes da ficção brasileira. Nas palavras de Adonias Filho: “O acervo do cancioneiro anônimo em sua fase oral, criado pelo povo em sua imaginação mítica – os fantasmas e os aventureiros, a mulher e o demônio, o amor e a morte –, ressurge nos contos de Noite na Taverna transfigurado literariamente. A base, pois, é culturalmente brasileira”.

Aqui vai um pequeno trecho que atesta a genialidade e apuro estético de Álvares de Azevedo: “E pois ergamo-nos, nós que amarelecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher”.

19 de janeiro de 2005

Fausto

Johann Wolfgang Goethe, 1808, Alemanha

Brilhante tragédia moderna! Fausto representa o homem ansioso pelo conhecimento e angustiado frente ao insondável mistério do saber. Versado em Filosofia, Medicina, Jurisprudência, Teologia e Artes, companheiro dos livros (que emparedam sua morada), o Doutor Fausto só consegue alcançar uma verdade: como o filósofo Sócrates, conclui que nada sabe.

Sem ver sáida para seu dilema, cede aos encantos de Mefistófeles (o diabo), que oferece, além dos prazeres, o conhecimento inatingido. Pode-se dizer que Fausto, de alguma maneira, reedita os mitos de Prometeu e de Adão e Eva.

Nosso doutor então embarca em uma nova vida terrena, na qual se depara com as delícias mundanas, descobre o valor da sensibilidade (uma nova forma de enxergar o mundo) e conhece o prazer sexual com Margarida, uma jovem a quem seduz e leva à loucura.

Uma valiosa obra de arte escrita pelo gênio de Goethe. Uma história, aparentemente simples, que alberga o universal contraditório da alma humana.

17 de janeiro de 2005

Os sofrimentos do jovem Werther

Johann Wolfgang Goethe, 1774, Alemanha

Obra referência da literatura alemã, grande clássico universal, o livro narra a história de Werther, um jovem da alta burguesia que enfrenta a impossibilidade de sucesso no amor. Sua amada, Carlota, já é comprometida e não existem sinais de mudança do quadro. Para Werther, o sofrimento é inexorável.

Elaborado como um apanhado de cartas e escritos individuais, o livro é uma intensa exploração psicológica. O humor do rapaz acompanha a expressão da natureza; na primavera esbanja vitalidade... enquanto que ao caminho do inverno essa força vai se esfriando. A cumulatividade da dor é sentida a cada página. Werther não vê alternativas, só enxerga a morte.

Comenta-se que a obra faz uma exaltação apologética do suicídio, e que não foram poucos os suicídios atribuídos ao romance. O fato é que trata-se “apenas” de literatura e, nela, tudo pode o homem.

15 de janeiro de 2005

Odisséia

Homero, + ou – 850 a.C., Grécia

Duas epopéias formam a base da literatura grega: a Ilíada, que versa sobre a guerra de Tróia, e a Odisséia, que narra a superioridade e a capacidade de adaptação do povo grego, personificadas no Grande Ulisses.

Essas histórias compõem o alicerce da identidade cultural dos helenos, aquilo que Marilena Chauí descreve como mito fundador (ver o tópico Mito fundador e Sociedade Autoritária, aqui mesmo, nesse Blog). Conhecer sobre a origem da Grécia é de destacada importância para os contemporâneos, já que ela é o germe daquilo que designamos como cultura ocidental.

Ulisses é o arquétipo do heroísmo e da astúcia humana. Amado e odiado pelos deuses do Olimpo, único homem a entrar e sair da morada dos mortos, o reino de Hades.

Sua aventura tem início com o fim da guerra de Tróia, quando tenciona voltar para casa. Alguns atos de imprudência do herói despertam a ira de Posêidon que, por sua vez, amaldiçoa seu regresso à Ítaca. Por outro lado, Palas Atena, que o admira, favorece o herói em sua odisséia.

Repleta de aventuras fantásticas, essa história alberga a circularidade da vida humana, nascimento e morte, luxo e miséria, felicidade e tristeza; Ulisses sai de sua terra natal, conhece glória e infortúnios, e só deseja voltar a casa, para os seus, a fim de gozar a paz e o calmo termo de sua vida.

13 de janeiro de 2005

Ulisses

James Joyce, 1914, Irlanda

Considerado pelos “especialistas” como o romance mais importante do século XX, Ulisses é uma referência de estilo literário contemporâneo. Tomando para si todo o poder da licença poética e liberdade de criação, Joyce constrói uma narrativa totalmente inovadora.

Em Ulisses, não existe a tradicional trama linear. Tampouco um narrador onisciente que guia a leitura e ajuda a tecer o significado dos acontecimentos; o sentido do texto tem de ser alinhavado pelo leitor num forçoso trabalho intelectivo.

Sem vislumbrar limites à sua criatividade, Joyce inova através de uma multiplicidade de vozes narrativas, polvilha incontáveis neologismos no texto, experimenta variados modos de pontuação, mistura tudo com tudo e inaugura a narrativa do (ou seria em?) fluxo de consciência.

O que seria esse fluxo de consciência? Trata-se da fragmentária, irreprimível, perene, enigmática, às vezes inconsciente, outras tantas ininteligível: linguagem do pensamento. O autor buscou, através da literatura, codificar o pensamento humano. Para a arte, foi uma belíssima experiência.

A história, centrada em três personagens principais Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus , trava intensa intextextualidade com a Odisséia, de Homero, sendo quase obrigatório o pré-conhecimento desse texto grego, antes de se aventurar no moderno Odisseu.

Do ponto de vista da fruição literária, Ulisses é um texto dificílimo, quase ilegível, se não impossível. Estaria além das capacidades do “leitor comum” (definição na qual me encaixo)? Talvez não tenha sido elaborado para esse tipo de público. Alguns até o consideram um grande engodo! Certamente, há de se reconhecer sua validade como obra revolucionária e inovadora, referência para toda a literatura posterior.

5 de janeiro de 2005

Mito Fundador e Sociedade Autoritária (não-ficção)

Marilena Chaui, 2000, Brasil

“Como foi construído o mito fundador do Brasil, desde 1500 aos nossos dias? Que papel essa idéia representa em nosso país, como fator de coesão e coerção social?”, eis algumas questões apresentadas pelo ensaio de Marilena Chaui.

Segundo a autora, mito, no sentido antropológico, é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no plano da realidade; e no sentido psicanalítico, é visto como impulso à repetição de algo imaginário que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede de lidar com ela. Quanto à fundação, refere-se a um instante imaginário que se mantém vivo ao longo do tempo; é algo tido como perene, que traveja e sustenta o curso temporal e lhe dá sentido.

Portanto, mito fundador é a narrativa que busca estabelecer um sentido originário e agregador para a afirmação de uma sociedade. Essa narrativa passa por cima dos conflitos e diferenças existentes, tentando dar à luz uma ordem e homegeneidade que, na realidade, não correspondem ao processo histórico.

No caso do Brasil, esse discurso passa pela idéia de paraíso terrestre, veja-se a carta de Caminha; país abençoado por Deus, ‘aqui não há catástrofes naturais’; povo pacífico e trabalhador, fruto da união de raças e que, portanto, desconhece o preconceito; e assim segue...

Na realidade, esta máscara não se encaixa: massacres em conflitos de terras e chacinas de crianças atestam a violência que aqui se tolera; denúncias e provas de trabalho escravo em pleno século XXI negam nossa 'civilização'; a vigência de um apartheid social, 98% das riquezas do país estão nas mãos de 2% da população; e assim também segue.

Essa pobre descrição que aqui me entrego é uma sombra da excelente argumentação e exposição de idéias da autora. Em suma, o grande alerta da obra, pode-se dizer, é que o discurso do mito fundador visa apaziguar as tensões, ocultar as diferenças, pasteurizar a pluralidade e perpetuar um estado de dominação.

Macário

Álvares de Azevedo, 1855, Brasil

Elaborado como um texto para teatro, fala de um jovem estudante, Macário, que se encontra com o diabo e, em sua garupa, segue viagem. O diálogo dos personagens versa sobre ‘os sentidos da vida’, a condição humana e a morte.

Quem melhor que o próprio Álvares de Azevedo para definir seu texto: “Esse é apenas como tudo que até hoje tenho esboçado, como um romance que escrevi numa noite de insônia, como um poema que cismei numa semana de febre [...] Esse drama é apenas uma inspiração confusa, rápida, que realizei à pressa como um pintor febril e trêmulo”.

Na segunda parte da obra, interessante é o contraste entre Macário e Penseroso (outro personagem). Eles travam um conflito de posições: crer versus não crer, verdade ou ilusão, amor ou devaneio... esse combate interno que toma como palco a mente humana.

Uma bela passagem: “Eu também chorei, mas, como as gotas que porjeam da abóbada escura das cavernas, essas lágrimas ardentes deixaram uma crosta de pedra no meu coração”.

No plano estético, Álvares de Azevedo é delicioso. O texto é escrito com muita sofisticação. Humor, profundidade e loucura enriquecem a obra.

4 de janeiro de 2005

Ivanhoé

Walter Scott, 1820, Inglaterra

A obra é um marco do romance histórico ocidental, exalta os cavaleiros medievais, o amor cortês, as batalhas sangrentas e aventuras espetaculares. A Inglaterra do século XII é o palco. O enredo retrata as intrigas políticas que antecedem e acompanham o regresso de Ricardo Coração de Leão ao trono inglês, depois de lutar na Terceira Cruzada. Ivanhoé, arquétipo de coragem e beleza, é um nobre cavaleiro saxão que se junta ao rei Ricardo nessa empresa.

Quanto à representação dos costumes da época, o autor expõe a intrínseca relação entre a Igreja e o poder econômico (o apego do clero ao dinheiro, a venda de favores religiosos e da salvação após a morte) e a superstição das pessoas em geral. No livro, também, encontram-se traços marcantes do anti-semitismo da época, entretanto, uma das personagens mais sábias e “nobres de alma” é uma bela jovem judia: Rebeca.

A história ainda ilustra a origem do idioma inglês, o qual estima-se que a metade das suas palavras seja de origem francesa. Segundo Márcio Simões, em matéria publicada na revista RNT, “a maioria dessas palavras foi adotada justamente num período em que a elite inglesa evitava falar inglês, que considerava coisa de pobre". Esse fenômeno está descrito no romance de Sir Walter Scott.