13 de dezembro de 2012

Manicômios, Prisões e Conventos (não-ficção)


Erving Goffman, 1961, Canadá

"As características das instituições totais" é o primeiro dos três ensaios contidos na obra. Nele, Goffman examina a vida dentro dos estabelecimentos que se enquandram no conceito de instituição total, aqueles que podem ser definidos "como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (p.11). Manicômios, prisões e conventos são os exemplos mais comuns deles, tanto que dão nome ao livro editado pela Editora Perspectiva.

Como se dá a sociabilidade nesses ambientes? Existem características comuns a estes espaços? Quais são as principais forças que condicionam internos e empregados? Como reagem os indivíduos? Essas são algumas questões consideradas pelo autor.

Goffman introduz seu ensaio pontuando que as instituições, das mais abertas às mais restritas, sempre apresentam uma tendência de fechamento, já que funcionam como espaços de construção de sentidos e delimitação do mundo. No extremo desse fechamento estariam as instituições totais.

"Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências de 'fechamento'. Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são muito mais 'fechadas' que outras. Seu fechamento ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas, pântanos" (p.16).

Mas por que estudar essas instituições? Qual a origem e o objetivo desses estabelecimentos? Para Goffman, o fato básico das instituições totais é o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas. "Os objetivos confessados nas instituições totais não são muito numerosos: realização de algum objetivo econômico; educação e instrução; tratamento médico ou psiquiátrico; purificação religiosa; proteção da comunidade mais ampla; e, segundo sugestão de um estudioso das prisões, incapacitação, retribuição, intimidação e reforma", indica o autor. Segundo ele, a instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal. "São estufas para mudar pessoas; cada um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao 'eu'", acrescenta.

Essa é a grande questão da obra. Por se configurarem como laboratórios de manipulação do 'eu', as instituições totais levam ao limite a coerção que exercem sobre os indivíduos e acabam produzindo efeitos extremos de condicionamento e mortificação do eu (supressão da concepção de si mesmo e da cultura pessoal). Além de se configurar como um estudo valioso, que serve de argumento para a extinção de estabelecimentos ineficientes e desumanos, ou mesmo para a reforma de outros que alguns defendem como necessários, o ensaio oferece interessantes pistas para o entendimento e interpretação das instituições ditas comuns e sua influência nas comunidades humanas.

A seguir, destaco mais alguns trechos marcantes do estudo.

Descrição das instituições totais
"As instituições totais de nossa sociedade podem ser, grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos. Em primeiro lugar, instituições criadas para cuidar das pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes. Emsegundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidarde si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro tipode instituição total é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões (do ponto de vistados que vivem nas moradias dos empregados). Finalmente, há os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre exemplos de tais instituições, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e outros claustros" (p.16-17).

A mortificação do eu
"O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele.
Os processos pelos quais o eu da pessoa é mortificado são relativamente padronizados nas instituições totais; a análise desse processo pode nos auxiliar a ver as disposições que os estabelecimentos comuns devem garantir, a fim de que seus membros possam preservar seu eu civil.
A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu. Na vida civil, a sequencia de horários dos papéis do indivíduo, tanto no ciclo vital quanto nas repetidas rotinas diárias, assegura que um papel que desempenhe não impeça sua realização e suas ligações em outro. Nas instituições totais, ao contrário, a participação automaticamente perturba a sequencia de papéis, pois a separação entre o internado e o mundo mais amplo dura o tempo todo e pode continuar por vários anos. Por isso ocorre o despojamento do papel. Em muitas instituições totais, inicialmente se proíbem as visitas vindas de fora e as saídas do estabelecimento, o que assegura uma ruptura inicial profunda com os papéis anteriores e uma avaliação da perda de papel" (p.24).

"O processo de admissão pode ser caracterizado como uma despedida e um começo, e o ponto médio do processo pode ser marcado pela nudez. Evidentemente, o fato de sair exige uma perda de propriedade, o que é importante porque as pessoas atribuem sentimentos do eu àquilo que possuem. Talvez a mais significativa dessas posses não seja física, pois é nosso nome; qualquer que seja a maneira de ser chamado, a perda de nosso nome é uma grande mutilação do eu" (p.27).

"Depois da admissão, a imagem que apresenta de si mesmo é atacada de outra forma. No idioma expressivo de determinada sociedade civil, alguns movimentos, algumas posturas e poses traduzem imagens inferiores do indivíduo e são evitadas como aviltantes. Qualquer regulamento, ordem ou tarefa, que obrigue o indivíduo a adotar tais movimentos ou posturas, pode mortificar seu eu. Nas instituições totais, são muito numerosas tais 'indignidades' físicas. Por exemplo, nos hospitais para doentes mentais os pacientes podem ser obrigados a comer com colher. Nas prisões militares, os internados podem ser obrigados a ficar em posição de sentido sempre que um oficial entre no local" (p.30).

"Qualquer que seja a forma ou a fonte dessas diferentes indignidades, o indivíduo precisa participar de atividade cujas consequências simbólicas são incompatíveis com sua concepção do eu. Um exemplo mais difuso desse tipo de mortificação ocorre quando é obrigado a executar uma rotina diária de vida que considera estranha a ele — aceitar um papel com o qual não se identifica" (p.31).

"Nas instituições totais há outra forma de mortificação; a partir da admissão, ocorre uma espécie de exposição contaminadora. No mundo externo, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos do eu — por exemplo, seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens — fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e as encarnações do eu são profanadas" (p.31).

"[...] tudo isso dá uma indicação terrível da autoridade onipotente sob a qual está vivendo" (p.39).

"No entanto, nas instituições totais dos três tipos, as várias justificativas para a mortificação do eu são muito frequentemente simples racionalizações, criadas por esforços para controlar a vida diária de grande número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos. Além disso, as mutilações do eu ocorrem nos três tipos, mesmo quando o internado está cooperando e a direção tem interesses ideais pelo seu bem-estar" (p.48).

"A mortificação ou mutilação do eu tendem a incluir aguda tensão psicológica para o indivíduo, mas para um indivíduo desiludido do mundo ou com sentimento de culpa, a mortificação pode provocar alívio psicológico" (p.49).

Antissociabilidade
"Nas instituições totais, geralmente há necessidade de esforço persistente e consciente para não enfrentar problemas. A fim de evitar possíveis incidentes, o internado pode renunciar a certos níveis de sociabilidade com seus companheiros" (p.45).

Infantilização
"Em primeiro lugar, as instituições totais perturbam ou profanam exatamente as ações que na sociedade civil têm o papel de atestar, ao ator e aos que estão em sua presença, que tem certa autonomia no seu mundo — que é uma pessoa com decisões 'adultas', autonomia e liberdade de ação. A impossibilidade de manter esse tipo de competência executiva adulta, ou, pelo menos, os seus símbolos, pode provocar no internado o horror de sentir-se radicalmente rebaixado no sistema de graduação de idade" (p.46).

Ineficiência
"Toda instituição total pode ser vista como uma espécie de mar morto, em que aparecem pequenas ilhas de atividades vivas e atraentes. Essa atividade pode ajudar o indivíduo a suportar a tensão psicológica usualmente criada pelos ataques ao eu. No entanto, precisamente na insuficiência de tais atividades, podemos encontrar um importante efeito de privação das instituições totais. Na sociedade civil, um indivíduo que fracassa num de seus papéis sociais geralmente tem oportunidade para esconder-se em algum local protegido onde pode aceitar a fantasia comercializada — cinema, TV, rádio, leitura — ou empregar 'consolos', como o cigarro ou a bebida: Nas instituições totais, principalmente logo depois da admissão, tais materiais podem não estar ao seu alcance. No momento em que tais pontos de repouso são mais necessários, podem ser mais difíceis" (p.66).

7 de setembro de 2012

Teorema


Pier Paolo Pasolini, 1968, Itália

Uma família, aparentemente acostumada a sua rotina de papéis bem estabelecidos, recebe a visita de um estranho. Esse misterioso hóspede, do qual não sabemos a origem e mesmo o nome, possui um charme e carisma que desloca completamente o centro de gravidade da casa, conquistando cada um dos moradores e transformando para sempre a vida deles. A família nunca mais será a mesma.

O estranho tem uma postura impassível e serena, e parece possuir uma empatia incrível, sendo capaz de entender e compreender a dor de cada um dos personagens. Essa postura de intimidade quase paternal aliada a uma beleza que emana juventude e vigor são os elementos principais do poder de atração que o hóspede exerce sobre os membros da família. "Uma presença que não tem nenhum significado e que, no entanto, é uma revelação", escreve Pasolini.

Um a um, da empregada ao pai, passando pelos filhos e pela matrona da casa, todos são seduzidos por essa luz irresistível, por esse desconcerto apaixonante que faz despertar dimensões ocultas e reprimidas do desejo. Esse contato com a luz não é impune para nenhum dos personagens. A experiência desloca a existência de sua condição anestesiada e confortável, trazendo à superfície de cada morador uma individualidade e consciência de si que alcançam contornos dolorosos e enlouquecedores. É o colapso daquela família.

"Alguma coisa difícil de definir, uma insuportável lucidez, o faz permanecer de olhos abertos, pensando, quem sabe, numa vida cujo sentido, depois de ter sido distorcido, ficou no ar, em suspenso. Que fazer dela?" (p.66).

O livro expressa o olhar de Pasolini sobre a denominada “crise estrutural do capital” a partir de uma de suas principais instâncias sócio-reprodutivas: a família. 

"Para poder exercitar, realmente ou realisticamente, a inteligência, ele deveria ser inteiramente recriado. Sua classe social vive nele a sua verdadeira vida. Não será, pois, compreendendo ou aceitando, e sim agindo, que ele poderá apoderar-se da realidade que lhe é sonegada por sua razão burguesa; só agindo, como num sonho; ou melhor, agindo antes de decidir" (p. 43).

O misterioso hóspede não é a causa do colapso familiar. O que o autor denuncia como origem desse processo é o próprio sistema capitalista, que reduz as individualidades a papéis padronizados, vazios e inertes; que condiciona as mentes para relações de consumo; e empobrece a riqueza da interação humana, pois impõe a mercadoria como referência de valor.

A família de “Teorema” já encontrava-se em crise antes da quebra da rotina. Seus laços já vinham deteriorados e enfraquecidos. A manutenção destes devia-se apenas a um conjunto de crenças equivocadas e à inércia típica dos anestesiados. Quando o estranhamento é colocado, com a chegada do hóspede, todo esse sistema precário desmorona e, com ele, os sentidos que davam sentido à antiga vida.

O título “Teorema” traduz a ideia de Pasolini de, a partir de uma situação particular, tentar denunciar uma condição que, para ele, é universalmente imposta pelo sistema capitalista: uma condição que implica na geração de individualidades frustradas, para que estas compensem seus vazios existenciais nas prateleiras da sociedade de consumo. Escrita e rodada em 1968 (Pasolini também dirigiu um filme com esse texto), a obra possui um destacado poder visionário que nos ajuda a entender um pouco da dinâmica neoliberal de nossa época.