2 de dezembro de 2007

Ataíde (não-ficção)

Texto de Lélia Coelho Frota
Fotos de Pedro de Moraes
1982, Brasil

O livro apresenta a vida e obra de Manuel da Costa Ataíde, notável pintor, dourador e entalhador, um dos ícones do barroco mineiro.

A obra reúne, em fotos muito bem realizadas, a pintura monumental de todos os forros elaborados por Ataíde, bem como a maioria dos trabalhos que realizou para as igrejas mineiras – usando as palavras do próprio artista, uma pintura de “elegante e moderna perspectiva”, realizada com “tintas de fino gosto e valentia”.

Nascido em Mariana (MG), em 1762, Mestre Ataíde é importante personagem da história da arte brasileira. Como atesta a autora, “terá sido Ataíde, pelo seu talento e condições ímpares da sociedade em que viveu, o único pintor brasileiro, até a atualização crítica promovida pelo modernismo, a realizar uma obra de caráter erudito verdadeiramente contemporânea daquelas que tinham curso na Europa” (p.34).

Lélia Coelho Frota conta que Ataíde foi um dos principais exemplos da pintura ilusionista de perspectiva da segunda fase do barroco mineiro, uma pintura que “quer introduzir o espectador no próprio céu, rompendo os limites do espaço arquitetônico real” (p.19), algo que os contemporâneos desta fase denominaram de “visão”.

Além do importante registro fotográfico, o livro faz uma análise estética da obra de Ataíde e uma abordagem crítica da sociedade e expressões artísticas do setecentos mineiro.

Para a autora, o genial artista mineiro estava à frente do seu tempo. Segundo ela, “se quisermos nos ater à cronologia, veríamos o Ataíde como predecessor não apenas de Visconti mas também dos próprios impressionistas europeus. Como revela Carlos Del Negro, ele desenvolve uma técnica que cria um meio 'atmosférico' para integração de suas figuras, pela contigüidade em pequenos toques, das cores do espectro solar empregadas independentemente” (p.33).

E ainda: “As madonas domésticas do Ataíde, verdadeiros retratos nem sempre destituídos de sensualismo, serão também as antecessoras da ampla representação da mulher, vista sob a ótica liberta das convenções acadêmicas do modernismo, que empreenderá a geração de Di Cavalcanti, Lasar Segall, Guignard, Portinari” (p.34).

O certo é que aqui, neste blog, muito ficou por dizer sobre o livro, e tudo ficou por ver. O conselho que fica é a leitura e contemplação desta obra editada pela Nova Fronteira. Melhor ainda seria o contato direto com a pintura do Mestre Ataíde, que pode ser encontrada em diversas igrejas de Minas Gerais.

21 de agosto de 2007

A menina que roubava livros

Markus Zusak, 2006, Austrália

O cenário é a Alemanha nazista. O tempo é a Segunda Guerra Mundial. A narradora é a Morte. E a protagonista é uma menina de oito anos, Liesel, a quem coube o rótulo de roubadora de livros, mas que era só uma doce menina que descobriu nas palavras todo o amor e ódio desse mundo.

Amor com o pai de criação, Hans Huberberman, a ensinar-lhe o mecanismo das letras que formam palavras e frases lidas.

Ódio nas palavras de Hitler, que dominaram a mente alemã e promoveram atrocidades inimagináveis.

E no meio desses dois extremos, toda a beleza, angústia, paixão, medo, alegria, desespero e descoberta encontrados na vida vivida e nas palavras colhidas pelo caminho.

Uma encantadora história que, se não é revolucionária do ponto de vista literário, foi escrita de forma bastante original, mesclando relatos telegráficos, poesias reveladoras, uma prosa muito bem trabalhada, e cores, muitas cores escritas.

Há muito que se falar sobre a obra, sobre seus personagens e como eles refletem a cena alemã da época e acabam por traduzir toda a humanidade, pois no texto existem as mais variadas matizes das manifestações que o ser humano é capaz. Mas prefiro me reter à importância metalingüística que o autor dá às palavras (ouvidas, ditas, lidas e escritas), essa matéria bruta com a qual é possível fazer o que se imaginar, com a qual sorrimos e choramos, e sem qual não vivemos.

Vamos a algumas:

"Por hora, Rudy e Liesel caminharam para a Rua Himmel, embaixo de chuva.
Ele era o maluco que se pintara de preto e derrotara o mundo inteiro.
Ela era a roubadora de livros que não tinha palavras.
Mas, acredite, as palavras estavam a caminho e, quando chegassem, Liesel as seguraria nas mãos feito nuvens, e as torceria feito chuva"
(p.72).

"Odiei as palvras e as amei, e espero tê-las usado direito" (p.458), afirma Liesel nas últimas linhas de seu livro, que também encontra-se dentro da obra.

29 de julho de 2007

Purgatório

Mario Prata, 2007, Brasil

Originalmente publicado em formato de folhetim, no jornal Estadão, o Purgatório, agora encadernado pela editora Planeta, é uma história muito divertida, leve e gostosa de ler.

Dante, protagonista da obra, um bancário casado com Emma, ex-jogadora de vôlei, passa a receber e-mails de sua primeira paixão, Beatriz, que acabara de morrer num acidente de avião. As mensagens são enviadas diretamente do Purgatório, através da chamada Transcomunicação Instrumental.

A partir daí começa a se desenrolar a trama, que conta as peripécias de Dante para morrer e ir se encontrar com seu grande amor no além. Mas ele tem que tomar cuidado, pois não pode pecar muito, e acabar no inferno, ou pecar de menos, e ir parar no céu.

Mário Prata despeja humor nessa história maluca e inusitada, temperada com temas como religião, corrupção, sexo, traição, drogas e muitos mais desses pecados nossos do cotidiano. Tudo isso em um cenário bem brasileiro e atual, com referências bastante conhecidas por todos nós.

A brincadeira fica mais rica ainda se observarmos a óbvia intertextualidade com obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia, na qual o autor italiano viaja pelo Inferno, Purgatório e Céu, em busca da amada Beatrice.

E por falar em intertextualidade, Gemma não seria como a Capitu, de Machado de Assis? Afinal, nessa bagunça toda dos acontecimentos, não dá pra saber se ela traiu ou não seu querido marido.

Uma palhinha desse tal de Purgatório, nas palavras de Beatriz: “Aqui no Purgatório estão os doidos, entre aspas. Mas ninguém quer sair daqui, não. Não temos as regalias que se tem no céu, mas convivemos com pessoas mais interessantes, mais vividas. Me entende?”

22 de julho de 2007

Os Gênios da Ciência (não-ficção)

Stephen Hawking, 2004, Inglaterra

Se vi mais longe foi porque estava sobre ombros de gigantes”, escreveu Isaac Newton em 1676. Essa frase, acrescenta Hawking, “é um comentário apropriado de sobre como a ciência, e de fato toda a civilização, é uma série de avanços incrementados, cada um construindo sobre o que existia antes”. E com esse espírito o autor escreve “Os Gênios da Ciência – Sobre os Ombros de Gigantes”, obra que visa reconhecer a contribuição de cinco dos maiores cientistas da história: Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630), Isaac Newton (1642-1727) e Albert Einstein (1879-1955).

Com cinco capítulos, cada um referente a uma das personalidades citadas, o livro mescla breves informações biográficas com trabalhos originais (manuscritos, artigos e publicações) desses cientistas. É uma oportunidade de, como informa a apresentação à edição brasileira, “seguir o processo criativo de alguns dos cientistas que revolucionaram a nossa maneira de compreender o universo, o espaço e o tempo, especialmente no que concerne à força gravitacional”.

Apesar dessa descrição, a obra pode ser considerada impalatável ao leitor que não transita na linguagem acadêmica da física e matemática, tornando-se por diversas vezes incompreensível ou mesmo ilegível. Stephen Hawking, excelente autor, conhecido por importantes obras de divulgação científica, parece não ter focado o grande público ao conceber este livro. Trata-se de um texto que deve ter seu lugar garantido na estante de profissionais da área.

Em todo caso, quem quiser experimentar a leitura sempre encontrará algo para absorver, principalmente no caso de Copérnico e Galileu, cujos trabalhos não são insondáveis, pelo contrário, são bastante acessíveis e bonitos de se ler.

13 de março de 2007

Falso Amanhecer (não-ficção)

John Gray, 1998, Inglaterra

Com o subtítulo “Os equívocos do capitalismo global”, a obra é um excelente estudo da utopia liberal do livre mercado e seu impacto devastador nas instituições sociais e valores burgueses.

O principal argumento do autor é: “O livre mercado não é – como a atual filosofia econômica supõe – uma situação natural de negócios que ocorre depois de eliminada a interferência política no mercado. Em qualquer perspectiva histórica ampla, o livre mercado é uma aberração rara e efêmera. Mercados regulamentados são a norma, e surgem espontaneamente na vida de qualquer sociedade. O livre mercado é uma criação do poder do Estado. A idéia de que mercados livres e Estado mínimo caminham juntos, que fez parte do arsenal da Nova Direita, é uma inversão da verdade. Uma vez que a tendência natural da sociedade é de controlar mercados, mercados livres só podem ser criados pelo poder de um Estado centralizado. Mercados livres são criações de governos fortes e não podem existir sem eles” (p.272).

O livre mercado, ou laissez-faire, é defendido por aqueles que acreditam que o mercado (ou economia) obtém seu melhor desempenho quando não é regulamentado. Segundo os arautos dessa idéia, o próprio mercado acaba se auto-regulando por meio da livre concorrência e da difusão democrática de conhecimento e informações entre os agentes econômicos. No entanto, alerta John Gray, essa é uma visão distorcida. Segundo ele, o capitalismo não age para preservar a harmonia da sociedade. “Deixado por sua própria conta, ele seria capaz de destruir a civilização liberal” (p.270). E é exatamente por causa de seu caráter destrutivo, continua o autor, que o capitalismo deve ser domado.

Nesse ponto, cabe salientar que o discurso do autor não é fruto de uma posição política ou partidária, ele é resultado de uma densa pesquisa científica. Os estudos de caso vão desde a edificação do livre mercado em meados do século 19 na Grã-Bretanha (o modelo de todas as políticas neoliberais subsequentes) e passam, no século 20, pelas experiências thatcheriana, neozelandesa e mexicana. Além disso, John Gray analisa as economias: americana, européias, russa, japonesa e de demais países asiáticos, como a China.

O livro demonstra que o fundamentalismo de mercado gera profundas instabilidades nas sociedades. Encolhimento da classe média; concentração de renda; aumento da miséria, da violência e do crime organizado; alto grau de degradação ambiental; desregulamentação trabalhista e redução salarial; redução ou extinção de políticas de proteção social; desintegração de instituições sociais mediadoras (como a família e a comunidade local), essas são algumas consequências identificadas nos estudos de caso elaborados por John Gray.

Confira ainda o desenvolvimento de duas idéias do autor:

O livre mercado como agente de desagregação social (caso dos EUA):
“Nos Estados Unidos, os mercados livres contribuíram para problemas sociais numa escala desconhecida em qualquer outro país desenvolvido. As famílias estão mais frágeis na América do que em qualquer outro país. Ao mesmo tempo, a ordem social sustenta-se com uma política de prisões em massa. Nenhum outro país industrializado avançado, à parte a Rússia pós-comunista, utiliza o encarceramento como meio de controle social na mesma proporção dos Estados Unidos. Os mercados livres, a devastação de famílias e comunidades inteiras e o uso das sanções das leis criminais como último recurso contra o colapso social caminham juntos” (p.11). Aqui o autor nos faz perceber que a conexão entre livres mercados e a política de “lei e ordem” jamais foi casual.

Incompatibilidade de conceitos:
“A democracia e o livre mercado são rivais, não aliados. A contrapartida natural da economia de livre mercado é uma política de insegurança. Se 'capitalismo' quer dizer 'livre mercado, então nenhuma visão é mais ilusória do que a crença de o futuro reside no 'capitalismo democrático'. No curso normal da vida política democrática, o livre mercado sempre tem vida curta. Seus custos sociais são tais que não podem ser legitimados por muito tempo em qualquer democracia. Esta verdade é demonstrada pela história do livre mercado na Grã-Bretanha e isto é bem entendido pelos mais sagazes pensadores neoliberais que planejam fazer o livre mercado global” (p.29). Nesse sentido, John Gray arremata, o capitalismo democrático mundial é uma utopia incoerente e irrealizável.

Por fim, vale destacar que John Gray não defende o fim do capitalismo e sua substituição por outro modelo (como o comunismo). Uma das conclusões do autor é que o socialismo ruiu irrecuperavelmente. Segundo ele, tanto o marxismo-leninismo, como a filosofia de livre mercado “são variações do projeto iluminista de suplantar a diversidade histórica de culturas humanas com uma civilização universal, única” (p.276). A saída, segundo argumenta, seria uma reforma da economia mundial que reduzisse os desequilíbrios gerados pela liberalização econômica.

Se nada for feito e insistirmos no modelo atual, o cenário pode ser nebuloso: “Quando o laissez-faire global ruir, uma profunda anarquia internacional será a perspectiva mais provável para a humanidade” (p.280).

3 de janeiro de 2007

Grandes Símios

Will Self, 1997, Inglaterra

Simon Dykes, um importante artista plástico londrino, acorda e descobre que sua namorada se transformou num chimpanzé. Na verdade, todos os habitantes do planeta se tornaram símios, inclusive ele. E nessa civilização de chimpanzés e bonobos, os humanos não passam de animais selvagens que habitam as florestas e os zoológicos.

Simon se imagina louco, resiste a essa realidade e é internado como um paciente psiquiátrico. Seu diagnóstico: delírio humano.

Aos poucos o paciente dá sinais de melhora, vai recuperando sua ”chimpunidade” e é reintroduzido ao convívio social. Nesse “mundo macaco”, o personagem se depara com comportamentos que contrastam bastante com suas lembranças humanas: O sexo é irreprimido, a qualquer hora e local as fêmeas no cio aceitam machos para cobri-las; orgias ocorrem em público; a nudez é regra; o incesto é permitido; a catação é norma social; o contato físico é abundante e até crucial para a comunicação entre os indivíduos.

Com essa inversão súbita da hierarquia das espécies, Will Self constrói um texto saboroso e fluido, rico de insigths sobre sociedade e indivíduo. Arte, antropologia, sociologia, filosofia, psicologia e medicina são alguns dos discursos mais presentes na tessitura dessa sátira surreal da condição humana.

Destaco essas belas pavras - uma fria, distanciada, correta e reveladora visão de nós mesmos, “bichos homem”:

“Humanos correndo eretos com seu passo de pernas duras; humanos caminhando em bandos, todos separados pela distância de um braço; humanos sentados juntos, sem se tocar, sem se catar, perdidos na incomunicativa prisão de seu magro senso, de seu primitivo modo de pensar” (p.228).