20 de novembro de 2008

Os trabalhadores do mar

Victor Hugo, 1866, França

A obra é um riquíssimo repertório de sentidos sobre a relação entre o homem e o mar, com histórias de viagens e de territórios distantes. Narrativa épica que explora o oceano para também navegar pela alma humana, seus medos, anseios, potências e misérias.

O livro nos apresenta Gilliatt, um homem simples que, sozinho, luta contra o mar, contra os elementos e contra as possibilidades, suplantando a fome, a sede, o frio e a solidão, tudo em nome do amor. A Durande, o barco ao qual vai em socorro, e Deruchette, a jovem pela qual está apaixonado, são, respectivamente, cenário e idéia através dos quais Gilliatt transcende todos os limites humanos. Gilliatt é um gigante, um herói, um Ulisses, um "Jó Prometeu".

Se de um lado temos o mar, com toda sua grandeza e com todo assombro que pode provocar, do outro temos o homem, finito e precário, mas disposto a lutar. São dois oceanos juntos nessa fascinante história escrita no século XIX.

Transcrevo algumas passagens brilhantes:

O mistério das coisas
"Nada mais perturbador do que ver manobrar a difusão das forças no insondável e no ilimitado. Procuram-se os fins. O espaço sempre em movimento, a água infatigável, as nuvens que parecem afadigadas, o vasto esforço obscuro, toda essa convulsão é um problema. Que faz este perpétuo tremor? Que constróem estes ventos? Que levantam estes abalos? Em que se ocupam os choques, os soluços, os gritos? Que faz todo esse tumulto? O fluxo e refluxo dessas questões é eterno como a maré" (p.230).

Natureza, homem e máquina
"O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama navegação.
Uma vontade no mecanismo faz contrapeso ao infinito. Também o infinito encerra um mecanismo. Os elementos sabem o que fazem e para onde vão. Não há força cega. Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerário.
Enquanto se não descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem" (p.146).

Vida e morte
"Toda natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras [...] Todas as criaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcros" (p.320).

Viver é arriscar
"Nenhum pássaro ousaria chocar, nenhum ovo ousaria abrir, nenhuma flor ousaria desabrochar, nenhum seio ousaria aleitar, nenhum coração ousaria amar, nenhum espírito ousaria voar, se pensasse nas sinistras emboscadas do abismo" (p.321).

Viver é imprevisível
"O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catástofres e as felicidades entram e saem como personagens inesperadas. Têm a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropelo. A consciência é a linha reta, a vida é o turbilhão. O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis. A sorte não tem tem a arte das transições. Às vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervalo de uma peripécia a outra e o laço de ontem a hoje" (p.379).

A força da impotência
"Ser impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a natureza, é na sua impotência que o homem acha o ponto de apoio, a oração.
O homem socorre-se do próprio medo; pede auxílio ao pavor; a ansiedade aconselha o ajoelhar.
A oração, enorme força própria da alma, é da mesma espécie que o mistério. A oração dirige-se à magnanimidade das trevas; a oração contempla o mistério com os olhos da sombra, e, diante da fixidez poderosa desse olhar súplice, sente-se um desarmamento possível no ignoto.
Essa possibilidade entrevista é já uma consolação" (p.343-344).

Corpo e alma
"O corpo humano é talvez uma simples aparência, escondendo a nossa realidade e condensando-se sobre a nossa luz ou sobre a nossa sombra. A realidade é a alma. A bem dizer, o rosto é uma máscara. O verdadeiro homem é o que está debaixo do homem. Mais de uma surpresa haveria se pudesse vê-lo agachado e escondido debaixo da ilusão que se chama carne" (p.43).

A perseverança transcende o ordinário
"O olho do homem é feito de modo que se lhe vê por ele a virtude. A nossa pupila diz que quantidade de homem há dentro. Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciências picam o olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que nada há que ame no coração. Quem ama quer, e aquele que quer relampeja e cintila. A resolução enche os olhos de fogo; admirável fogo que se compõe da combustão dos pensamentos tímidos. Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: - Perseverança. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória. Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtém o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não inclui o parar. Da queda sai a ascenção. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes. Perecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória vencida que se chama o martírio" (p.255).

26 de abril de 2008

Escravidão e universo cultural na colônia (não-ficção)

Eduardo França Paiva, 2001, Brasil

Logo na orelha da obra, um breve texto do historiador francês, Serge Gruzisnky, faz interessante apresentação da pesquisa elaborada por Eduardo França Paiva. Copio um trecho:

“Como os homens e as mulheres submetidos à escravidão viviam essa condição? Qual podia ser sua margem de manobra? Qual era o lugar dos forros nessa sociedade, de que maneira e por qual preço conquistavam sua liberdade? Quais eram as relações dos escravos e dos forros com os brancos, donos de escravos, quer fossem ricos ou pouco fortunados?
Para responder a estas perguntas e romper os clichês que ainda embaraçam (obstruem) as nossas memórias e historiografias, Eduardo França Paiva explora incansavelmente os arquivos mineiros do século XVIII. [...] Ao mergulhar no laboratório sociocultural extraordinário que constituiu Minas Gerais, o leitor descobrirá uma sociedade complexa, móvel, cheia de contradições, no seio da qual negros e mulatos, homens e mulheres, aparecem integralmente como protagonistas da história do século XVIII”.

Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789 é um trabalho referência da nova historiografia sobre a escravidão no Brasil. A obra lança um novo olhar para a sociedade escravista, enriquecendo nossa compreensão sobre as relações sociais envolvidas nesse contexto. Longe de querer negar a escravidão ou de querer torná-la um palco de amenidades, o objetivo de Eduardo França Paiva é, como já adiantou Gruzisnky, sair do lugar comum e perceber que tanto escravos como senhores foram sujeitos da história na qual viveram e que a dicotomia dominante/dominado explica muito pouco dessa história.

“É através de legados ricos como os deixados nesses papéis [os testamentos e inventários pesquisados pelo autor] que se torna possível, por exemplo, o ataque ao que venho chamando de imaginário do tronco, tão arraigado no entendimento sobre a escravidão brasileira. Isto é, ao imaginário sobre a escravidão e os escravos, construído sobre mitos, exageros e versões ideologizadas ou moldadas pelo pragmatismo político. Versões que de forma caricatural condenam a posteriori os escravos ao trabalho desumano e intenso ou ao castigo corporal, como se a vida desses agentes históricos, com exceção dos que se rebelavam, fugiam ou se aquilombavam, se restringisse a essas balizas. No entanto, os libertos testadores demonstraram em seus relatos que o tronco e os outros instrumentos de coerção física e moral não tiveram, pelo menos em áreas urbanizadas do setecentos, emprego tão intenso e corriqueiro quanto se acredita generalizadamente hoje. Este tipo de violência fora substituído por outros, como as restrições à ascensão social dos forros e as interdições de variada natureza impostas indistintamente a cativos, a libertos e a seus descendentes. Em muitas outras ocasiões o controle violento dos mancípios foi substituído por acordos que interessavam a proprietários e a propriedades e que, freqüentemente, reverteram-se em alforrias individuais e coletivas. E não se tratava de agrupamentos reduzidos numericamente. Ao contrário, refiro-me à maior aglomeração de escravos e de libertos entre as capitanias do Brasil e uma das mais importantes, se não a mais importante, de todo o Novo Mundo escravista, no século XVIII” (p. 24-25).

Sobre uma classe intermediária urbana nas Minas do século XVIII
“O setecentos mineiro é realmente um marco especial para todo o império português. A riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mãos, a miséria fazia parte da vida cotidiana dos núcleos urbanos e de áreas rurais, mas conformara-se uma classe intermediária urbana que tornava aquela sociedade diferenciada. A importância desse grupo provinha diretamente da dimensão quantitativa atingida por ele, assim como de seu poder de influência. Além disso, seus integrantes produziam riqueza, pagavam impostos e eram consumidores pertinazes. Já o sabia bem o Conde das Galveas, governador das Minas, em 1732, quando advertia que o trabalho dos forros rendia impostos necessários ao rei. Exatamente os forros, pois eram eles que constituíam parcela respeitável dessa camada intermediária” (p.26).

Uma economia diversificada
“Livres, libertos e escravos compunham a sociedade que se instalara no que antigamente era chamado de sertões. [...] Mas não era apenas isso. Eles compunham, todos, embora com importância diferenciada, o mercado, o grande, dinâmico e diverso mercado emergido nas Minas do setecentos. Através dessa enorme demanda comercial foram estreitados os contatos entre a Colônia e longínquas praças: Índia, Europa, África. Às Minas chegaram tecidos, pedraria e contas, louças, panelas e utensílios domésticos, calçados, chapéus, luvas, lenços, meias e ornamentos variados, além de certos alimentos e bebidas de proveniência diversificada” (p.26-27).

Uma sociedade complexa
“Chegou, também, gente oriunda de muitos lugares distantes para aí se estabelecer. Os encontros pessoais, materiais e culturais foram inevitáveis e corriqueiros. Resultaram na aproximação entre universos geograficamente afastados, em hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriações, em adaptações e em sobreposição de representações e de práticas culturais. Por conta disso o estudo pretende contribuir para reflexões historiográficas que abarquem extensão ampla” (p.27).

A pesquisa
Eduardo França Paiva estuda, ao todo, 859 testamentos e inventários de homens e mulheres originários de várias partes do Brasil e do mundo ou mesmo nascidos em Minas. O grupo é dividido entre homens livres, homens forros, mulheres livres e mulheres forras.

Entre as conclusões que o autor chegou após a análise desses documentos está o fato de que, mesmo sendo a ascensão social um privilégio dos brancos, o enriquecimento dos negros libertos era possível. Destaque para o sucesso da mulher nesse cenário:

“A ascensão social era privilégio, portanto, de alguns brancos e isso era garantido pelas leis e ordenações que vigoraram na América portuguesa. [...] Mas, quanto ao enriquecimento de libertos e de seus descendentes, isto não foi possível interditar. O fenômeno era muito mais freqüente, claro, nas regiões mais urbanizadas. A possibilidade de ascensão econômica foi concretizada por vários desses antigos escravos e por seus filhos e netos nascidos livres, embora as grandes fortunas coloniais permanecessem entre alvas mãos. [...] Entre os que lograram enriquecer, as mulheres constituíram a maioria, assim como formavam, também, a parcela mais numerosa dos alforriados” (p.67).

Liberdade e preconceito
“Proprietários de escravos, às vezes enriquecidos, libertos do cativeiro, mas sempre estigmatizados pela cor da pele, que denunciava o passado de submissão, a origem presa a grilhões e a indiscutível condição de inferioridade intelectual e cultural. Os forros, mesmos os que experimentavam ascensão econômica, não escapavam da discriminação cultivada abertamente ou de maneira camuflada pela sociedade colonial. De toda forma, o fato de terem se libertado e de terem formado um enorme contingente populacional – algo próximo a 120.000 indivíduos, no final do século XVIII, apenas nas Minas – já é o suficiente para ajuntá-los em agrupamento distinto” (p.68). Para efeito de comparação, a população de escravos nesse período era de cerca de 170.000.

O imaginário do tronco
O autor nos relata a distorcida compreensão da sociedade escravista que vem imperando no senso comum e que passou a ser combatida pela historiografia brasileira produzida a partir da década de 1980:

“A imagem de violência física empregada incessantemente sobre os escravos transformava as relações escravistas coloniais em contatos sempre antagônicos, marcados pela desconfiança, pela revolta e pelo medo. Não obstante, reconheciam-se os cativos como agentes históricos [...] apenas quando se revoltavam, fugiam ou matavam, desconsiderando qualquer outra estratégia de resistência menos evidente que essas. As escravas, sempre, eram exploradas sexualmente e quase nada faziam além do serviço doméstico e da reprodução biológica. A família, entendida sempre a partir de um modelo europeu e cristão, não existia entre os escravos no Brasil, e o mais comum era haver um ou mais escravos reprodutores nas senzalas, responsáveis pela fecundação das fêmeas. Os libertos, quando mencionados, sempre ganhavam e jamais conquistavam suas cartas de alforria. [...] Essas e tantas outras 'verdades' sobre a escravidão tanto povoaram e continuam povoando o imaginário brasileiro” (p.85-86).

A família escrava
Contrariando essas verdades distorcidas, Eduardo França Paiva nos mostra que a formação de famílias entre escravos era um acontecimento bastante comum no seio da sociedade mineira dos setecentos. Na verdade, essa prática, era interessante tanto para senhores como para cativos.

“Sem dúvida alguma, a formação de famílias escravas foi estratégia aproveitada tanto pelos escravos quanto pelos senhores. Se ela representava proteção e solidariedade para os primeiros, também significava maior e melhor controle sobre a escravaria e sobre a sociedade escravista colonial para os segundos” (p.150).

De acordo com o autor, a freqüente presença de famílias escravas promoveu uma relativa estabilidade das relações cotidianas entre proprietários e propriedades. Ela explicaria uma baixa referência a fugas, castigos e torturas, e também estaria relacionada à longevidade dos escravos em Minas Gerais.

As alforrias nas Minas
E foram essas formas flexíveis de convívio entre senhores e cativos que favoreceram acordos que resultavam em alforrias. O autor descreve o interessante processo da coartação, muito usado como meio para a liberdade, que consistia na compra da alforria através do pagamento em parcelas e durante determinado tempo, ao fim do qual a liberdade era alcançada. De acordo com França Paiva, o processo não era regulamentado pela legislação em vigor, mas tratava-se de prática e de direito costumeiros.

“Contrapondo-se, portanto, à idéia de que as alforrias dependiam apenas da boa vontade dos proprietários, os processos de coartação demonstram bem como os maiores interessados, os escravos, conseguiam intervir nessas histórias. Eles ajudaram a moldá-las, assim como participaram efetivamente na construção da própria sociedade escravista colonial” (p.168).

Uma ressalva importante
“Isso não significa, evidentemente, que as relações escravistas nas Minas ou no Brasil tenham sido doces, amenas e não tenham experimentado tensões, conflitos e desacordos. O exagero e o estereótipo, de todas as formas como são empregados, trazem grande prejuízo ao conhecimento” (p.156).

11 de abril de 2008

O queijo e os vermes (não-ficção)

Carlo Ginzburg, 1976, Itália

A obra é um dos mais importantes trabalhos da chamada micro-história, uma vertente historiográfica que defende uma delimitação temática extremamente específica, inclusive em termos de espacialidade e de temporalidade:

“Numa escala de observação reduzida, a análise desenvolve-se a partir de uma exploração exaustiva das fontes, envolvendo a descrição etnográfica e preocupando-se com uma narrativa literária. A micro-história contempla temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas (geográfica ou sociologicamente), às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente figuras anônimas, que passariam despercebidas na multidão” (Wikipedia, acessado em 11/4/2008).

Um personagem in-comum
Em “O queijo e os vermes”, Ginzburg foca sua lente em um personagem aparentemente comum, um camponês europeu do século XVI, mais especificamente um moleiro italiano chamado Domenico Scandella e conhecido como Menocchio.

No entanto, Menocchio tinha algumas características incomuns, como saber ler e escrever. E foi essa habilidade, aliada a uma forte curiosidade e atitude questionadora, que fez desse “simples” moleiro um alvo para a Inquisição – Menocchio ousou criar e expor idéias heterodoxas sobre Deus e fé e acabou sendo processado, preso e morto como herege.

Algumas dessas idéias, nas palavras do próprio moleiro:

“[...] 'Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael' [...]" (p.43).

“[...] 'E me parece que na nossa leio papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruinam os pobres' [...]" (p.47).

“[...] 'A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo pra todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão [...] Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe. [...] Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso' [...]" (p.48).

“[...] 'Eu penso que que cada um acha que sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor' [...]" (p.101).

Um clássico
A partir do estudo dos autos de condenação do moleiro italiano, Ginzburg esboça uma teoria bem mais ampla sobre as relações e trocas entre a cultura de massas e a cultura das classes altas (circularidade cultural), e sobre os vestígios do pensamento pagão ainda em fins da idade média.

O brilhante trabalho de reconstrução do cotidiano e das idéias de Menocchio e a abordagem de importantes questões metodológicas fazem de “O queijo e os vermes” um marco da reflexão sobre a escrita da história, suas dificuldades, desafios e possibilidades.

Leitura imperdível!

6 de abril de 2008

História & Livro e Leitura (não-ficção)

André Belo, 2002, Brasil

“Este livro é uma reflexão em torno da história do livro. Não se trata, porém, de apresentar aqui ao leitor uma descrição de como foi escrito e feito o livro ao longo dos tempos [...] Trata-se antes de falar do livro como um objeto que tem uma história e de mostrar como essa história tem sido contada pelos historiadores” (p.15), nos informa o autor.

Nos dois primeiros capítulos da obra, André Belo faz um pouco da história da história do livro, “vendo como ela se prolongou numa história da leitura e como ela se tornou num terreno de diálogo entre diferentes áreas científicas e acadêmicas” (p.15). O atual momento da pesquisa na área é abordado no terceiro e último capítulo, no qual o autor revela que “a investigação atual se projeta bem para além das suas fronteiras tradicionais, limitadas ao livro impresso e à história moderna européia, abrangendo diferentes regiões geográficas, cronologias, suportes da escrita e meios de comunicação” (p.15).

O impacto da tipografia
De acordo com André Belo, o debate sobre a importância da invenção da tipografia nasceu com a publicação da obra A revolução da cultura impressa, da historiadora norte-americana Elisabeth Eisenstein.

“[...] mais do que um mero agente de uma difusão alargada do escrito e da imagem, a imprensa foi responsável, segundo Eisenstein, por alterações qualitativas nas operações intelectuais associadas à leitura e à compreensão dos textos. [...] Para Eisenstein, o objeto impresso define uma cultura original, qualitativamente diferente da cultura manuscrita que existia anteriormente” (p.23).

Na argumentação de André Belo, as idéias de Eisenstein davam continuidade, no meio historiográfico, às teses defendidas pelo teórico da cultura e da comunicação de massas Marshal McLuhan.

“Em A Galáxia de Gutenberg (MCLUHAN, 1977/1962), esse autor colocou em oposição diferentes modos de comunicação ao longo da história das sociedades: na Antiguidade e na Idade Média existiu baseada no manuscrito e na oralidade; nesse ambiente, a leitura em voz alta e a audição coletiva eram o modo de transmissão e recepção dos discursos; a ela seguiu-se uma cultura do livro impresso, em que a troca de idéias se fez predominantemente por meio da leitura individual, feita em silêncio, em que a visão veio substituir a audição e a voz como sentido dominante na comunicação. Segundo esse autor, a invenção de Gutenberg constituiu uma ruptura fundamental na história da cultura, dando origem a um novo modo de percepção, a do 'homem tipográfico'. As teses de McLuhan, que tinham por trás a idéia fundamental de que o 'meio [de comunicação] é a mensagem', foram desenvolvidas no preciso momento em que a televisão, o rádio e o telefone se afirmavam como meios de comunicação de massa. Para o autor, o seu aparecimento marcava o início do fim da galáxia de Gutenberg, isto é, o fim da era do predomínio da leitura visual e a entrada numa nova constelação da comunicação em que, por meio da convivência permanente entre texto, imagem e som, os sentidos associados à oralidade recuperariam importância” (p.24).

Mas André Belo apresenta argumentos que representam importantes ressalvas à possível dicotomia entre uma era do manuscrito e uma outra, a era do impresso.

“A idéia de que existiu uma ruptura entre a era do manuscrito e a era do impresso tem sido combatida por vários autores, com destaque para [...] Roger Chartier. [...] Chartier fala também de uma 'cultura do impresso' nascida com a invenção de Gutenberg. No entanto, ela não deve ser colocada em oposição a uma cultura do manuscrito, antes deve ser considerada sua herdeira. Se a imprensa representa uma alteração fundamental nas capacidades técnicas de reprodução dos textos, ela perde seu caráter revolucionário quando comparada com outras mudanças consideradas por Chartier tão ou mais decisivas, como é o caso do aparecimento do livro com a forma que conhecemos ainda hoje, verificado entre os séculos II e IV da era cristã. Antes da tipografia, com efeito, o livro era escrito e copiado à mão, era normalmente menos portátil do que os livros atuais, mas já era um códice, isto é, um conjunto de cadernos costurados uns aos outros e encadernados. Na opinião de Chartier, o que permaneceu no livro depois de Gutenberg foi mais importante do que o que mudou: os sinais que facilitam a orientação do leitor no interior do livro (enumeração de páginas, de colunas ou linhas) e no interior de cada página (títulos de capítulos e letras iniciais ornamentadas) nasceram no tempo do livro manuscrito, o mesmo acontecendo com os índices alfabéticos ou por assuntos. A imprensa não criou um objeto novo e não obrigou a novos gestos da parte do leitor, ao contrário do que aconteceu com o aparecimento do códice (CHARTIER, 1994). Ela também não alterou, pelo menos inicialmente, o conteúdo dos textos disponíveis: os Padres da Igreja, os clássicos latinos e gregos, os textos religiosos ou laicos de autores consagrados foram os primeiros livros impressos” (p.24-23).

O sucesso do códice quase nos faz esquecer, prossegue o autor, que o livro teve outros formatos – rolos de papiro ou de pergaminho (cuja materialidade implicava num tipo de leitura diverso da do códice, que facilita a navegação dentro do texto); tabuinhas de argila – e que a escrita teve outros suportes – tecidos, conchas, cerâmica, marfim, folhas de palmeira.

“Cada uma dessas diferentes formas de livro implicou, ao longo de uma história já com alguns milênios, diversos modos de escrever e ler. Obrigou ao uso de um determinado tipo de instrumento, a uma certa postura corporal, a um certo modo de organizar o texto (ou a imagem), dependendo da textura do suporte ou de seu formato” (p.27).

Técnica x Cultura
Nessa altura, André Belo propõe as seguintes questões: “qual a relação entre as mudanças tecnológicas e as mudanças culturais? Podemos dizer que são sobretudo as inovações técnicas que produzem transformações no modo de pensar, de ler e de conhecer ou, pelo contrário, que são necessidades culturais e sociais que dão origem ao aparecimento de novas tecnologias de difusão do saber?” (p.28).

“Chartier, uma vez mais, generaliza: a invenção da tipografia não revolucionou a forma do livro, nem seu conteúdo, nem a maneira de ler. Não podemos dizer que as inovações na técnica de reprodução dos textos produzam, por si só, revoluções na relação com o escrito. Na longa história do livro, as grandes alterações foram produzidas por transformações culturais e sociais mais profundas. [...] contra o que considera um 'determinismo tecnológico', Chartier afirma que as técnicas não existem para além do que os seus produtores e utilizadores fazem delas (CHARTIER, 2000, p. 31). No Ocidente, a imprensa, como inovação no modo de reproduzir os textos, necessitou de várias outras condições para se afirmar, a começar pela disponibilidade de uma matéria-prima fundamental como o papel. Contrariamente, na China do século XI e na Coréia do século XIII, os caracteres móveis, em terracota e em metal já eram conhecidos, mas a escala de sua utilização permaneceu reduzida por razões políticas e culturais (Idem, 1994). Na primeira metade do século XIX, a imprensa conheceu sua primeira industrialização, com a introdução da tipografia mecânica a vapor e da máquina de papel contínuo. Mas as tiragens dos livros e periódicos permaneceram modestas diante das novas capacidades produtivas. Só na segunda metade do século XIX se verificou o aparecimento da grande tiragem nos jornais e outras publicações de baixo custo, trazendo consigo importantes novidades no número de leitores atingidos e nos tipos de gêneros publicados. Isto não aconteceu apenas por razões técnicas, mas também por causa de fatores econômicos e decisões editoriais, por sua vez impossíveis de obter sucesso sem o apoio de outros fatores culturais, como o desenvolvimento da escolarização (Idem, 1995)” (p.29 e 30).

No entanto, alerta André Belo, essa perspectiva de Chartier apresenta um inconveniente, qual seja, o risco de diminuirmos o impacto social que a imprensa gerou e sua capacidade para ser um agente de mudança. Em nenhuma hipótese, a importância do surgimento da imprensa pode ser desconsiderada.

“Mesmo que o livro manuscrito tenha permanecido durante bastante tempo como modelo seguido pelo livro impresso, a nova técnica de reprodução dos textos multiplicou claramente as possibilidades de difusão geográfica das obras relativamente à cópia manuscrita. E também as suas capacidades de conservação: a multiplicação de uma obra em centenas ou milhares de exemplares garantia, bem melhor do que o manuscrito, a sua sobrevivência à passagem do tempo” (p.30 e 31).

O que é a história do livro e da leitura?
“Para a revista Book History, [...] a história do livro abrange 'toda a história da comunicação escrita: a criação, a disseminação, os usos do manuscrito e do impresso em qualquer suporte, incluindo livros, jornais periódicos, manuscritos e outros objetos impressos de vida efêmera'. O leque de interesses da revista estende-se assim aos seguintes domínios: 'história social, cultural e econômica da autoria, publicação, impressão, artes gráficas, direitos de autor, censura, comércio e a distribuição de livros, bibliotecas, competências de leitura e escrita, crítica literária, hábitos de leitura, teoria da recepção literária'” (p. 37).

“No entender de Robert Darnton, [...] o objetivo da história do livro é 'compreender como as idéias foram transmitidas através da imprensa e como a exposição à palavra impressa afetou o pensamento e o comportamento da humanidade durante os últimos quinhentos anos” (p.38).

“Donald F. McKenzie [...] define a especialidade como uma 'sociologia dos textos'. Estudar o passado do livro é estudar o seu conteúdo considerando toda a vasta gama de realidades sociais que os textos envolvem e com as quais interagem, em cada momento de sua produção, transmissão e consumo (MCKENZIE, 1986, p. 6-7)” (p. 38).

“Por fim, para o Institut d'Historie du Livre, um órgão francês que reúne várias instituições ligadas ao livro, entre universidades, museus e bibliotecas, o objeto alargado de uma história do livro é a comunicação escrita. Trata-se de uma área totalmente interdisciplinar em que dialogam a história, a sociologia, a antropologia e as ciências da linguagem e da informação” (p.38-39).

Uma síntese
“Essas definições são razoavelmente convergentes num aspecto essencial: da história do livro atual faz parte muito mais do que o simples estudo dos procedimentos técnicos de escrita e reprodução de um livro até ele chegar ao leitor [...] Mais do que apenas o livro como objeto material, essa história compreende a comunicação e todos os processos sociais, culturais e literários que os textos afetam e envolvem. Ela integra um conjunto de disciplinas específicas de tal maneira vasto que é impossível resumi-lo aqui” (p.39).

O leitor reescreve o livro
André Belo nos apresenta também o problema inovador da pesquisa sobre as diferentes modalidades de consumo do livro pelos leitores, abordagem que trouxe entendimentos inovadores como o fato de que a leitura é (e sempre foi) uma prática acompanhada socialmente (ou seja, não é uma prática solitária, sofrendo condicionamentos) e a existência de uma pluralidade de direções de leitura:

“O leitor, de certa maneira, reescreve o texto que lê. Por isso, a página impressa não é uma letra morta: ela é o lugar onde se produz o encontro, sempre diferente, entre a palavra já escrita e os novos sentidos que os leitores lhe vão dando. Como escreveu Jorge Luís Borges, uma literatura distingue-se de uma outra menos pela letra do texto do que pela forma como ela é lida. Essa idéia ajusta-se perfeitamente a uma interrogação histórica: enquanto o texto permanece uma unidade fixa, os leitores em diferentes épocas vão-se apropriando dele de forma plural; como afirmou Levenson, citado por Bordieu, 'um livro muda pelo fato de não mudar enquanto o mundo muda' (BORDIEU e CHARTIER, 1985, p. 236)” (p.52-53).

Mais adiante, depois de elaborar um apanhado de possíveis fontes de pesquisa e problematizar questões metodológicas no campo da história do livro e da leitura, André Belo faz uma interessante observação sobre o papel do leitor no universo dos textos: “O sentido desse texto, de qualquer texto, depende sempre da leitura que dele será feita” (p.103).

2 de abril de 2008

História & Fotografia (não-ficção)

Maria Eliza Linhares Borges, 2003, Brasil

Contribuir para um diálogo fértil entre História e Fotografia, essa é a intenção principal deste texto que aborda critérios teórico-metodológicos acerca da utilização de imagens fotográficas no campo da análise histórica.

O livro analisa, inicialmente, as razões que “levaram uma parcela significativa da comunidade de historiadores do século XIX a estabelecer uma hierarquia de importância entre as fontes de pesquisa histórica, a classificar as fontes visuais como documentos de pesquisa de segunda categoria e, finalmente, a não incluir a fotografia no rol dos documentos de pesquisa em História” (p.12).

Em seguida, a autora busca mostrar que, “embora rejeitada como fonte de pesquisa histórica, a fotografia introduziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundo moderno, rapidamente incorporado por homens e mulheres do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Sem pretender desenvolver uma história da fotografia, elegemos algumas representações fotográficas de maior expressão no século para, a partir delas, buscarmos compreender os usos e as funções sociais a elas atribuídas pelos fotógrafos, profissionais e amadores, dos anos oitocentos. Simultaneamente a esse descortinar do olhar fotográfico introduzimos alguns dos critérios que hoje orientam a análise dessa importante fonte de pesquisa histórica” (p.12-13).

Por fim, Maria Eliza trata da relação hoje existente entre a história-conhecimento e o documento fotográfico, fazendo uma reflexão sobre a natureza da linguagem fotográfica e realizando “uma breve incursão sobre as viagens fotográficas, de estrangeiros e nacionais, através do Brasil imperial e republicano” (p.13).

A fotografia para a História Cultural
Para o novo paradigma histórico da História Cultural, a questão não é propor a utilização da fotografia como recurso ilustrativo do texto histórico, tampouco como documento que tem a pretensão de espelhar fielmente a realidade (ilusão bastante comum quando se fala de imagens fotográficas). A fotografia agora ascende à condição de fonte, de objeto capaz de oferecer informações importantes para a elaboração de interpretações históricas.

Maria Eliza descreve esse novo papel da imagem para a historiografia contemporânea:

“Quando as imagens visuais, dentre elas a fotografia, são utilizadas como fontes de pesquisa histórica, é porque funcionam como mediadoras e não como reflexo de um dado universo sociocultural. Integram um sistema de significação que não pode ser reduzido ao nível das crenças formais e conscientes. Pertencem à ordem do simbólico, da linguagem metafórica. São portadoras de estilos cognitivos próprios” (p.18-19).

“[...] as imagens fotográficas, assim como as literárias e sonoras, propõem uma hermenêutica sobre as práticas sociais e suas representações. Funcionam como sinais de orientação, como linguagens. Quando utilizadas com fins compreensivos e explicativos, elas demandam não apenas o emprego de metodologias afinadas com seus estilos cognitivos – que ajudam a ler e interpretar suas ambigüidades e seus silêncios – como também o cruzamento com outros tipos de documentos” (p.72).

“Ao lidar com as imagens visuais, o historiador as encara como um documento, como uma construção cultural, cuja confecção e difusão têm uma história que não pode ser desconhecida pela análise histórica. Sabe que as formas e os conteúdos imagéticos podem sofrer alterações, voluntárias ou não” (p.81).

A imagem é fixa, o sentido não é
“Hoje não mais se duvida da natureza polissêmica da imagem, da variabilidade de sentidos de suas formas de produção, emissão e recepção. Sabe-se que uma imagem visual é uma forma simbólica cujo significado não existe per si, quer dizer, ''lá dentro', como coisa dada que pré-existe ao olhar, à intenção de quem o produz'. Vista sob essa ótica, ela deixa de ser espelho ou duplicação do real, como queriam os historiadores da historiografia metódica. Apresenta-se como uma linguagem que não é verdadeira nem falsa. Seus discursos sinalizam lógicas diferenciadas de organização do pensamento, de ordenação dos espaços sociais e de medição dos tempos culturais. Constituem modos específicos de articular tradição e modernidade. Por tudo isso, sabe-se que uma dada imagem é uma representação do mundo que varia de acordo com os códigos culturais de quem a produz” (p.80).

30 de março de 2008

O que é arte? (não-ficção)

Jorge Coli, 1981, Brasil

Encontrar uma definição completa e acabada para a arte é tarefa vã, alerta Jorge Coli. Mais apropriado, indica o autor, seria descobrir critérios que atribuem a um um objeto o estatuto de arte, ou seja, quais forças em nossa cultura determinam a atribuição do qualificativo de arte a um objeto.

“Para decidir o que é ou não arte, nossa cultura possui instrumentos específicos. Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que proferem o crítico, o historiador da arte, o perito, o conservador de museu. São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também dão estatuto de arte a um objeto. Num museu, numa galeria, sei de antemão que encontrarei obras de arte; num 'cinema de arte', filmes que escapam à 'banalidade' dos circuitos normais; numa sala de concertos, música 'erudita', etc. Esses locais garantem-me assim o rótulo 'arte' às coisas que apresentam, enobrecendo-as” (p.10-11 - grifo meu).

Mas as coisas não são tão simples assim, avisa Coli. Ele lembra que apesar de a autoridade do discurso da crítica especializada ser poderoso, o julgamento que ela profere nunca será absoluto e universal. Ao contrário de um discurso técnico, que analisa aspectos objetivos em determinada situação, os “discursos que determinam o estatuto da arte e o valor de um objeto artístico, são de outra natureza, mais complexa, mais arbitrária”, esclarece o autor. Coli nos prova, através de diversos exemplos, que a crítica tem que ser relativizada como um discurso histórico, pertencente a um tempo e um espaço.

Algumas considerações interessantes sobre o problema:

“[...] a autoridade institucional do discurso competente é forte, mas inconstante e contraditória, e não nos permite segurança no interior do universo das artes” (p.22).

“[...] o importante é termos em mente que o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando os objetos sobre os quais ela recai” (p.11).

“A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o discurso, o local, as atitudes de admiração, etc” (p.12).

Estilo
“Os discursos sobre as artes parecem, com freqüência, ter a nostalgia do rigor científico, a vontade de atingir uma objetividade de análise que lhes garanta as conclusões. E na história do discurso, na história da crítica, na história da história da arte, constantemente encontramos esforços para atingir algumas bases sólidas sobre as quais se possa apoiar uma construção rigorosa.
O instrumento primeiro e mais freqüente desse desejo de rigor é o das categorias de classificações estilísticas. Se conseguirmos definir estilos, no interior dos quais encaixamos a totalidade da produção artística, começamos a pisar terreno mais seguro. E a palavra sobre as artes tentará determinar essas classificações gerais” (p.24-25 - grifo meu).

Para Coli, a idéia de estilo está ligada à idéia de recorrência, de constantes. O conceito “repousa sobre o princípio de uma inter-relação de constantes formais no interior da obra de arte”, acrescenta. Dessa forma, a palavra estilo pode designar tanto o estilo pessoal de cada autor, como o estilo de uma época (“um pano de fundo estilístico comum às obras, por diferentes que sejam”).

Novamente as coisas não são tão simples como se pretendem, e Coli nos deixa mais um um alerta:

“Neste esquema simplificado, a idéia é sedutora. Mas o problema, bem mais complexo, impede na realidade que as articulações sejam assim tão fáceis. Porque a obra de arte não se reduz ao estilo, e porque as classificações estilísticas não têm, muitas vezes, a pureza formal que evocamos [...] E também porque, no discurso sobre a arte, não é raro encontrarem-se referências à idéia de estilo como se fosse suficiente e formal, o que vem ainda mais complicar as coisas” (p.28-29).

Reduzir as obras de arte a seus respectivos estilos é tentador, pois o impulso humano de classificar busca dar ordem ao caos, domesticar a complexidade. Mas essa seria uma atitude totalmente empobrecedora e insatisfatória, demonstra Coli:

“Na maior parte das vezes, atribuímos a essas palavras [impressionismo, rococó, barroco, surrealismo, etc.] um poder excessivo: o de encarnarem uma espécie de essência à qual a obra se refere. [...] Isso nos tranqüiliza, pois [ao aplicar tais palavras] supomos conhecer o essencial sobre a obra; supomos saber o que significam as classificações, e que a obra corresponde a uma delas” (p.29).

Novamente, vale repetir aqui uma recomendação que seria a de todo historiador cultural: Conceitos e classificações nunca devem ser tomadas como algo universal; conceitos são históricos e têm vida num determinado tempo e espaço.

Texto rico
Diferentemente do recorte aqui executado, o texto Jorge Coli aborda uma grande diversidade de questões sobre a arte a obra de arte. Ele fala sobre a produção, comercialização, exposição e conservação da obra de arte e os impactos culturais gerados por cada um desses procedimentos; fala sobre a fruição e apropriação da obra por parte do espectador; e sobre a efemeridade material e cultural dos objetos artísticos, entre tantos outros assuntos.

Especificamente sobre a fruição, o autor nos alerta para o fato de que ela não seria algo imediato, fruto de uma sensibilidade inata. Em suas palavras:

“A fruição da arte não é imediata, espontânea, um dom, uma graça. Pressupõe um esforço diante da cultura. Para que possamos emocionar-nos, palpitar com o espetáculo de uma partida de futebol, é necessário conhecermos as regras desse jogo, do contrário tudo nos passará desapercebido, e seremos forçosamente indiferentes.
[...] A arte, no entanto, exige um conjunto de relações e de referências muito mais complicadas [do que no caso do futebol, por exemplo]. Pois as regras do jogo artístico evoluem com o tempo, envelhecem, transformam-se nas mãos de cada artista. Tudo na arte – e nunca estaremos insistindo bastante sobre esse ponto – é mutável e complexo, ambíguo e polissêmico. Com a arte não se pode aprender 'regras' de apreciação. E a percepção artística não se dá espontaneamente.
[...] Dessa forma, na nossa relação com a arte nada é espontâneo. Quando julgamos um objeto artístico dizendo 'gosto' ou 'não gosto', mesmo que acreditemos manifestar uma opinião 'livre', estamos na realidade sendo determinados por todos os instrumentos que possuímos para manter relações com a cultura que nos rodeia. 'Gostar' ou 'não gostar' não significa possuir uma 'sensibilidade inata' ou ser capaz de uma 'fruição espontânea' – significa uma reação do complexo de elementos culturais que estão dentro de nós diante do complexo cultural que está fora de nós, isto é, a obra de arte” (p.115-117).

O autor também faz uma breve panorâmica de importantes nomes da área, como Heinrich Wölfflin (pioneiro na análise formal), Eugenio d'Ors, Focillon e Panofsky (que mudou o foco da análise para a questão das significações – iconologia – em detrimento das questões formais).

E finaliza falando sobre o poder da arte, qual seja, o de criar mundos, de nos fazer sentir, viajar e entender.

“A arte tem assim uma função que poderíamos chamar de conhecimento, de 'aprendizagem'. Seu domínio é o do não racional, do indizível, da sensibilidade: domínio sem fronteiras nítidas, muito diferente do mundo da ciência, da lógica, da teoria. Domínio fecundo, pois nosso contato com a arte nos transforma. Porque o objeto artístico traz em si, habilmente organizados, os meios de despertar em nós, em nossas emoções e razão, reações culturalmente ricas, que aguçam os instrumentos dos quais nos servimos para apreender o mundo que nos rodeia” (p.109).

27 de março de 2008

História & História Cultural (não-ficção)

Sandra Jatahy Pesavento, 2003, Brasil

A proposta de Sandra Pesavento é apresentar uma panorâmica sobre a História Cultural, uma nova forma de abordagem da História que se consolidou no final do século XX.

“Se a História Cultural é chamada de Nova História Cultural”, afirma a autora logo na introdução da obra, “é porque está dando a ver uma nova forma de a História trabalhar a cultura. Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou uma História Intelectual, ou ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, a estudar as grandes correntes de idéias e seus nomes mais expressivos. Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo” (p.15).

Segundo ela, não estamos mais no tempo de certezas normativas, de leis e modelos que regem o social. A busca de verdades absolutas dá lugar à construção de versões narrativas. A História se relativiza:

“Uma era de dúvida, talvez, de suspeita, por certo, na qual tudo é posto em interrogação, pondo em causa a coerência do mundo. Tudo o que foi, um dia, contado de uma forma, pode vir a ser contado de outra. Tudo o que hoje acontece terá, no futuro, várias versões narrativas. [...] Mudou o mundo, mudou a história, mudaram os historiadores” (p.15-16).

Mudanças epistemológicas
Sandra Pesavento dedica um capítulo inteiro para os conceitos que fundamentam esse novo olhar da História e que reorientam a postura do historiador.

O primeiro desses conceitos é o da representação. De acordo com a autora, as representações seriam “formas integradoras da vida social, construídas pelos homens para manter a coesão do grupo e que propõem como representação do mundo”.

“Expressas por normas, instituições, discursos, imagens e ritos, tais representações formam como que uma realidade paralela à existência dos indivíduos, mas fazem os homens viverem por elas e nelas. [...] As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade” (p.39).

O segundo conceito abordado por Sandra é o de imaginário, que entende-se ser “um sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (p.43).

“O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito. [...] para além de sua dimensão histórica, o imaginário é capacidade humana para representação do mundo, com o que lhe confere sentido ontológico” (p.43).

A abordagem da autora nos faz perceber que o que chamamos de mundo real é indissociável do mundo imaginário, que nenhuma sociedade vive fora do imaginário. O mundo imaginário seria o mais real dos mundos, pois é por ele e nele que as pessoas efetivamente conduzem sua existência.

“[...] tudo aquilo que o homem considera como sendo a realidade é o próprio imaginário. [...] a sociedade só existe no plano do simbólico porque pensamos nela e a representamos, desta ou daquela maneira. [...] o terreno do imaginário abrange todo o campo da experiência humana” (p. 44-45).

Outro conceito abordado por ela é o de narrativa, que está relacionado ao novo entendimento da História. “Contemporaneamente, ela é entendida como a narrativa do que aconteceu um dia, entendimento que marca uma diferença significativa com as concepções anteriores”, informa a historiadora.

“Sim, a História teria como meta atingir a verdade do acontecido, mas não como mímesis. Entre aquilo que teve lugar um dia, em um tempo físico já transcorrido e irreversível, e o texto que conta o que aconteceu, há uma mediação. [...] A figura do narrador – no caso, o historiador, que narra o acontecido – é a de alguém que mediatiza, que realiza uma seleção dos dados disponíveis, que tece relações entre eles, que os dispõe em uma seqüência dada e dá inteligibilidade ao texto” (p. 50).

A relativização do alcance de uma verdade absoluta por parte da História introduz, segundo a autora, a concepção do conceito de ficção.

“Nada é simplesmente colhido do passado pelo historiador, como uma história dada. Tudo o que se conhece como História é uma construção da experiência do passado [...] A História inventa o mundo, dentro de um horizonte de aproximação com a realidade [...] Nesta medida, a História constrói um discurso imaginário e aproximativo sobre aquilo que teria ocorrido um dia, o que implica dizer que faz uso da ficção” (p. 53).

“O historiador é aquele que, a partir dos traços deixados pelo passado, vai em busca da descoberta do como aquilo teria acontecido, processo este que envolve urdidura, montagem, seleção, recorte, exclusão. Ou seja, o historiador cria o passado e [...] a História é uma forma de ficção, tal como a Literatura. [...] A ficção é quase histórica, assim como a História é quase uma ficção”, (p.53-54).

Sandra Pesavento trabalha ainda o conceito de sensibilidades, as quais seriam o “cerne daquilo que o historiador do passado pretende atingir”.

“As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos. Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar no passado, à própria energia da vida” (p.57).

A autora arremata: “Representação e imaginário, o retorno da narrativa, a entrada em cena da ficção e a idéia das sensibilidades levam os historiadores a repensar não só as possibilidades de acesso ao passado, na reconfiguração de uma temporalidade, como colocam em evidência a escrita da história e a leitura dos textos” (p.59).

Sobre correntes e campos de pesquisa
Segundo Pesavento, são três as correntes trilhadas pela História Cultural, a partir desse novo patamar epistemológico e metodológico. São elas: a corrente do Texto; a corrente da Micro-História; e a corrente da Nova História Política.

“A primeira delas seria aquela do texto, pensando a escrita e a leitura. Seus pressupostos de análise decorrem daqueles conceitos já apresentados, ou seja, o da compreensão da História como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado, e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção dos textos” (p.69).

“A micro-história, como o próprio nome indica, realiza uma redução da escala de análise, seguida da exploração intensiva de um objeto de talhe limitado. Esse processo é acompanhado de uma valorização do empírico, exaustivamente trabalhado ao longo de extensa pesquisa de arquivo” (p.72).
“Os elementos do micro, recolhidos pelo historiador, são como a ponta de um iceberg que aflora e que permite cristalizar algo e atingir outras questões que não se revelam a um primeiro olhar” (p.73).

“Às vezes chamada de Nova História Política, essa postura resulta do endosso, pelos historiadores do político, dos pressupostos epistemológicos que presidem a análise na História Cultural. Imaginário, representação, a produção e recepção do discurso historiográfico reformularam a compreensão do político” (p.75).

De acordo com a historiadora, tais correntes se traduzem em alguns campos temáticos de pesquisa, em torno dos quais se agregam os trabalhos de investigação, quais sejam: o campo das cidades; o campo História e Literatura; o campo das imagens; o campo das identidades; o campo do presente; e o campo da memória.

Ótima leitura
Além de abordar conceitos, métodos e correntes dessa disciplina que marca uma grande virada na História, o livro apresenta os principais autores e movimentos precursores da História Cultural e ainda traz um breve panorama da historiografia brasileira nessa área.

26 de março de 2008

História & Imagens (não-ficção)

Eduardo França Paiva, 2002, Brasil

O livro integra a série “História e Reflexões”, uma coleção, publicada pela Editora Autêntica, que pretende oferecer ao leitor instrumentos que o guiem introdutoriamente nos temas lacunares da História, principalmente nos teóricos-conceituais e metodológicos do campo da História Cultural.

O autor de História & Imagens (e também idealizador da coleção) esclarece que, se antes a iconografia era usada apenas como ilustração e gravura que temperava o texto histórico, hoje ela é fonte privilegiada para a disciplina.

“A iconografia é tomada agora como registro histórico realizado por meio de ícones, de imagens pintadas, desenhadas, impressas ou imaginadas e, ainda, esculpidas, modeladas, talhadas, gravadas em material fotográfico e cinematográfico. São Registros com os quais os historiadores e professores de História devem estabelecer um diálogo contínuo. É preciso saber indagá-los e deles escutar as respostas” (p.17).

Eduardo França Paiva comenta a proposta de sua obra: “As imagens, as representações, os usos delas e as práticas culturais construídas em torno delas e por meio delas constituem [..] a linha mestra desse livro. A sua leitura crítica, que deve problematizar, contextualizar, relativizar e desconstruir, é o alvo a ser atingido. No caminho, até alcançá-lo, convido-o, leitor, a rever, a reinterpretar e a construir a história por meio dessa fonte perigosamente sedutora, uma das vedetes da historiografia mais recente, ela própria instigante e provocadora da sua própria desconstrução e de seu eterno fazer-se” (p.15).

O que a imagem nos oferece
Logo nas primeiras páginas de seu texto, o autor destaca a importância de um esforço crítico em relação à imagem. Ele lembra que apesar de seu apelo aos sentidos, a imagem é apenas um simulacro, não podendo nunca ser considerada como a realidade histórica em si. A imagem apenas traz fragmentos do real, “traços aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e formas [...]. Cabe a nós decodificar os ícones, torná-los inteligíveis o mais que pudermos, identificar seus filtros e, enfim, tomá-los como testemunhos que subsidiam a nossa versão do passado e do presente, ela também, plena de filtros contemporâneos, de vazios e intencionalidades” (p.19).

História não é certeza
Em seqüência às considerações sobre a imagem e à versão histórica produzida a partir dela, Eduardo França Paiva nos oferece belas palavras sobre o caráter transitório e pantanoso da História, palavras que podem facilmente ser adaptadas para relativizar todo o conhecimento humano:

“Mas a História é isto! É a construção que não cessa, é a perpétua geração, como já se disse, sempre ocorrendo do presente para o passado. É o que garante a nossa desconfiança salutar em relação ao que se apresenta como definitivo e completo, pois sabemos que isso não existe na História, posto que inexiste na vida dos homens, que são seus construtores” (p.19).

O imaginário
Para o autor, um ponto que não pode ser levado em conta é fato de que as representações – códigos, símbolos, alegorias, etc – integram, sim, “a dimensão do real, do cotidiano, da história vivenciada”. Não existe separação entre aquilo que chamamos de mundo real e mundo imaginário, esses universos se interceptam, se sobrepõem, se confundem.

“O imaginário não é, como se poderia pensar, um mundo à parte da realidade histórica, uma espécie de nuvens carregadas de imagens e representações que pairam sobre nossas cabeças, mas que não fazem parte de nosso mundo e de nossas vidas. Ao contrário, esse campo icônico e figurativo influencia, diretamente, nossos julgamentos; nossas formas de viver; de trabalhar; de morar; de nos vestirmos; de alimentarmos; de expressarmos nossas crenças, sejam elas religiosas, políticas ou morais; de nos organizarmos em nosso cotidiano; de escolhermos nossas atividades e profissões; de construirmos nossas práticas culturais e de novamente representarmos o mundo em que vivemos, em toda sua diversidade e complexidade” (p.26-27).

A obra
História & Imagens não se esgota neste parco comentário aqui elaborado. O livro é rico em aspectos técnicos, metodológicos e conceituais, além de interessantíssimas construções históricas feitas sobre registros iconográficos. Cito algumas: desenhos que registram ocupações e formas de trabalho no Brasil do início do século XIX; o uso recorrente de animais para simbolizar o estranhamento entre continentes (domesticado e fiel, o cão, figura européia, se contrasta com o macaco, o peru, o rinoceronte, a arara e o papagaio, sinônimos de “natureza rude, selvagem, inconstante, imprevisível”); o uso da imagem como instrumento pedagógico para o cristianismo; quadros que expõem uma visão discriminadora sobre a população negra e mestiça; ou pinturas que, em outro momento histórico, passam a celebrar e valorizar expressões culturais populares de origens afro-brasileiras.

História & Imagens é “um livro sobre história cultural, que toma as representações icônicas e figurativas como pontos centrais de reflexão”, explica Eduardo França Paiva. “[...] uma reflexão sobre a recepção, a apropriação e a exploração das imagens no cotidiano, pelo público leigo e por parte dos especialistas, sobretudo por parte dos historiadores”, acrescenta.

5 de fevereiro de 2008

Sintaxe da Linguagem Visual (não-ficção)

Donis A. Dondis, 1973, EUA

Existe uma sintaxe visual? Existem linhas gerais para a criação de composições? Pode-se falar em elementos básicos e técnicas manipulativas utilizadas para a criação de mensagens visuais claras?

Segundo Donis A. Dondis, a resposta a todas essas perguntas é sim. Para ela, “o modo visual constitui todo um corpo de dados que, como a linguagem, podem ser usados para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade, desde o puramente funcional até os mais elevados domínios da expressão artística” (p.3). E aí está a motivação de sua obra: “[...] ser um manual básico de todas as comunicações e expressões visuais, um estudo de todos os componentes visuais e um corpo comum de recursos visuais [...]” (p.3).

O presente post tenta resgatar os principais conceitos abordados em “Sintaxe da linguagem visual”. A seguir, o leitor vai se deparar com uma colagem um pouco fragmentária, mas que pode ser útil para a apreensão de algumas idéias abordadas por Dondis. O objetivo aqui não é esgotar o assunto, mas tentar criar conexões que favoreçam à memória de quem já leu o livro.

A importância de um alfabetismo visual
Conhecer uma sintaxe visual básica implica na ampliação da capacidade de ver, interpretar e criar mensagens visuais. Isso é o mesmo que dizer que uma pessoa visualmente alfabetizada está apta a navegar com mais desenvoltura pelo universo de signos visuais da contemporaneidade. Aquele que realmente vê e enxerga, é mais livre para ir, vir, escolher e sentir.


A autora nos esclarece melhor esse ponto:

“Que vantagens traz para os que não são artistas o desenvolvimento de sua acuidade visual e de seu potencial de expressão? O primeiro e fundamental benefício está no desenvolvimento de critérios que ultrapassem a resposta natural e os gostos e preferências pessoais ou condicionados. Só os visualmente sofisticados podem elevar-se acima dos modismos e fazer juízos de valor sobre o que consideram apropriado e esteticamente agradável. [...] Alfabetismo significa participação, e transforma todos que o alcançaram em observadores menos passivos. [...] Alfabetismo visual significa uma inteligência visual” (p.231).

Elementos básicos da comunicação visual
“Sempre que alguma coisa é projetada e feita, esboçada e pintada, desenhada, rabiscada, construída, esculpida ou gesticulada, a substância visual da obra é composta a partir de uma lista básica de elementos. [...] Os elementos visuais constituem a substância básica daquilo que vemos, e seu número é reduzido” (p.51).


São eles:

- O ponto: “O ponto é a unidade de comunicação visual mais simples e irredutivelmente mínima. [...] Qualquer ponto tem grande poder de atração visual sobre o olho” (p.53).

- A linha: “Nas artes visuais, a linha tem, por sua própria natureza, uma enorme energia. Nunca é estática; é o elemento visual inquieto e inquiridor do esboço. Onde quer que seja utilizada é o instrumento fundamental da pré-visualização, o meio de apresentar, em forma palpável, aquilo que ainda não existe, a não ser na imaginação. [..] Sua natureza linear e fluida reforça a liberdade de experimentação. Contudo, apesar de sua flexibilidade e liberdade, a linha não é vaga: é decisiva, tem propósito e direção, vai para algum lugar, faz algo definitivo” (p.56).

- A forma: De acordo com a autora, existem três formas básicas: o quadrado, o círculo e o triângulo eqüilátero. “Cada uma das formas básicas tem suas características específicas, e a cada uma se atribui uma grande quantidade de significados, alguns por associação, outros por vinculação arbitrária, e outros, ainda, através de nossas próprias percepções psicológicas e fisiológicas” (p.58).

- Direção: “Todas as formas básicas expressam três direções visuais básicas e significativas: o quadrado, a horizontal e a vertical; o triângulo, a diagonal; o círculo, a curva. Cada uma das direções visuais tem um forte significado associativo e é um valioso instrumento para a criação de mensagens visuais” (p.59 e 60). De acordo com Dondis, a referência horizontal-vertical tem a ver com o equilíbrio; a diagonal está relacionada à instabilidade e à tensão; e as forças direcionais curvas se associam à abrangência, repetição e calidez.

- Tom: “O mundo em que vivemos é dimensional, e o tom é um dos melhores instrumentos de que dispõe o visualizador para indicar e expressar essa dimensão” (p.62). “[...] a sensibilidade tonal é básica para nossa sobrevivência. Só é superada pela referência vertical-horizontal enquanto pista visual do relacionamento que mantemos com o meio ambiente. Graças a ela vemos o movimento súbito, a profundidade, a distância e outras referências do ambiente. O valor tonal é outra maneira de descrever a luz. Graças a ele, e exclusivamente a ele, é que enxergamos” (p.64).

- Cor: “Enquanto o tom está associado a questões de sobrevivência, sendo portanto essencial para o organismo humano, a cor tem maiores afinidades com as emoções. [...] A cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que temos todos em comum. Constitui, portanto, uma fonte de valor inestimável para os comunicadores visuais. [...] Assim, a cor oferece um vocabulário enorme e de grande utilidade para o alfabetismo visual” (p. 64). A cor tem três dimensões que podem ser definidas e medidas: matiz, saturação e brilho.

- Textura: “A textura se relaciona com a composição de uma substância através de variações mínimas na superfície do material” (p.70 e 71).

- Escala: “Todos os elementos visuais são capazes de se modificar e se definir uns aos outros. O processo constitui, em si, o elemento daquilo que chamamos escala” (p.72). O brilho se contrapõe ao escuro, o grande faz o pequeno, e assim por diante. “Aprender a relacionar o tamanho com o objetivo e o significado é essencial na estruturação da mensagem visual” (p.75)

- Dimensão: “A dimensão existe no mundo real. Não só podemos senti-la, mas também vê-la, com o auxílio de nossa visão estereóptica e binocular. Mas em nenhuma das representações bidimensionais da realidade, como o desenho, a pintura, a fotografia, o cinema e a televisão, existe uma dimensão real; ela é apenas implícita. A ilusão pode ser reforçada de muitas maneiras, mas o principal artifício para simulá-la é a convenção técnica da perspectiva” (p.75).

- Movimento: “[...] o movimento talvez seja uma das forças visuais mais dominantes da experiência humana” (p.80). Presente naturalmente na televisão e no cinema, o movimento pode ser sugerido nas artes visuais estáticas.

Percepção e comunicação visual“Na criação de mensagens visuais, o significado não se encontra apenas nos efeitos cumulativos da disposição dos elementos básicos, mas também no mecanismo perceptivo universalmente compartilhado pelo organismo humano” (p.30).

- Equilíbrio: “O equilíbrio é a referência visual mais forte e firme do homem, sua base consciente e inconsciente para fazer avaliações visuais” (p.32). Ele pode ser alcançado de forma simétrica ou assimétrica.

- Tensão: É o inesperado, o mais irregular, complexo e instável. Uma figura de maior tensão, ou seja, menos equilibrada, chama mais a atenção do espectador.

- Ambigüidade: “Como a ambigüidade verbal, a ambigüidade visual obscurece não apenas a intenção compositiva, mas também seu significado. [...] Em termos ideais, as formas visuais não devem ser propositalmente obscuras; devem harmonizar ou contrastar, atrair ou repelir, estabelecer relação ou entrar em conflito” (p.39).

- Preferência pelo ângulo inferior esquerdo: “O olho favorece a zona inferior esquerda de qualquer campo visual” (p.39).

- Atração e agrupamento: “Através de suas percepções, o homem tem necessidade de construir conjuntos a partir de unidades [...] ligar os pontos de acordo com a atração dos mesmos. [...] Na linguagem visual, os opostos se repelem, mas os semelhantes se atraem” (p.44 e 45).

Anatomia da mensagem visual“Expressamos e recebemos mensagens visuais em três níveis: o representacional – aquilo que vemos e identificamos com base no meio ambiente e na experiência; o abstrato – a qualidade cinestésica de um fato visual reduzido a seus componentes visuais básicos e elementares, enfatizando os meios mais diretos, emocionais e mesmo primitivos da criação de mensagens; e o simbólico – o vasto universo de sistemas de símbolos codificados que o homem criou arbitrariamente e ao qual atribuiu significados. Todos esses níveis de resgate de informações são interligados e se sobrepõem, mas é possível estabelecer distinções suficientes entre eles, de tal modo que possam ser analisados tanto em termos de seu valor como tática potencial para a criação de mensagens quanto em termos de sua qualidade no processo de visão” (p.85).

“Quanto mais representacional for a informação visual, mais específica será sua referência; quanto mais abstrata, mais geral e abrangente” (p.95).

Técnicas visuais: estratégias de comunicação“As técnicas são os agentes no processo de comunicação visual; é através de sua energia que o caráter de uma solução visual adquire forma. As opções são vastas, e são muitos os formatos e os meios; os três níveis da estrutura visual interagem. Por mais avassalador que seja o número de opções abertas a quem pretenda solucionar um problema visual, são as técnicas que apresentarão sempre uma maior eficácia enquanto elementos de conexão entre a intenção e o resultado. Inversamente, o conhecimento da natureza das técnicas criará um público mais perspicaz para qualquer manifestação visual” (p. 24 e 25).

Em síntese, as técnicas visuais são as ferramentas de manipulação dos elementos básicos da comunicação visual.

“O significado, porém, emerge das ações psicofisiológicas dos estímulos exteriores sobre o organismo humano: a tendência a organizar todas as pistas visuais em formas o mais simples possível; a associação automática das pistas visuais que possuem semelhanças identificáveis; a incontornável necessidade de equilíbrio; a associação compulsiva de unidades visuais nascidas da proximidade; e o favorecimento, em qualquer campo visual, da esquerda sobre a direita, e do ângulo inferior sobre o superior. Todos esses fatores regem a percepção visual, e o reconhecimento de como operam pode fortalecer ou negar o uso da técnica” (p.137).

Segundo a autora, existem inúmeras técnicas e elas podem ser enumeradas em uma série disposta em pares de opostos. Dondis analisa algumas:

Contraste - Harmonia
instabilidade - equilíbrio
irregularidade - regularidade
assimetria - simetria
complexidade - simplicidade
fragmentação - unidade
profusão - economia
exagero - minimização
espontaneidade - previsibilidade
atividade - estase
ousadia - sutileza
ênfase - neutralidade
transparência - opacidade
variação - estabilidade
distorção - exatidão
profundidade - planura
justaposição - singularidade
acaso - seqüencialidade
agudeza - difusão
episodicidade - repetição

A síntese do estilo visual“O estilo é a síntese visual de elementos, técnicas, sintaxe, inspiração, expressão e finalidade básica. É complexo e difícil de descrever com clareza. Talvez a melhor maneira de estabelecer sua definição, em termos de alfabetismo visual, seja vê-lo como uma categoria ou classe de expressão visual modelada pela plenitude de um ambiente cultural” (p.161).

“Ao longo de toda a história do homem, quase todos os produtos das artes e dos ofícios visuais podem ser associados a cinco grandes categorias de estilo visual: primitivo, expressionista, clássico, ornamental e funcional” (p.166).

- Primitivo: “A arte e o design primitivos são estilisticamente simples, ou seja, não desenvolveram técnicas de reprodução realista da informação visual natural. Na verdade, trata-se de um estilo muito rico em 'símbolos' com forte carga de significado, e, por essa razão, podem ter muito mais a ver com o desenvolvimento da escrita do que com a expressão visual” (p.168). O estilo primitivo também é caracterizado pela simplicidade das formas, representação plana e uso de cores primárias.
Dentre as técnicas primitivas, destacam-se: exagero, espontaneidade, atividade, simplicidade, distorção, planura, rotundidade, irregularidade, colorismo.


- Expressionismo: “O expressionismo usa o exagero propositalmente, com o objetivo de distorcer a realidade. É um estilo que busca provocar a emoção, seja religiosa ou intelectual. [...] Onde quer que exista, o estilo ultrapassa o racional e atinge o místico, uma visão interior da realidade, saturada de paixão e intensificada pelo sentimento” (p.171). “O estilo expressionista está presente sempre que o artista ou designer procura evocar a máxima resposta emocional do observador” (p.173).
O expressionismo prefere as técnicas: exagero, espontaneidade, atividade, complexidade, rotundidade, ousadia, variação, distorção, irregularidade, justaposição, verticalidade.


- Clássico: “A racionalidade de design metodologicamente típica da arte grega e romana [...] produziu o estilo visual prototípico do classicismo. Em sua forma mais pura, o estilo clássico extrai sua inspiração de duas fontes distintas. Primeiro, é influenciado pelo amor à natureza, idealizado pelos gregos de modo a tornar-se uma espécie de supra-realidade. [...] Os gregos buscavam a verdade pura em sua filosofia e ciência, e aqui se encontra a segunda fonte do estilo clássico” (p.173).
Dentre as técnicas clássicas, destacam-se: harmonia, simplicidade, exatidão, simetria, profundidade, estabilidade, monocromatismo, agudeza, unidade.


- Ornamental: “O estilo ornamental enfatiza a atenuação dos ângulos agudos com técnicas visuais discursivas que resultam em efeitos cálidos e elegantes. Esse estilo não só é suntuoso em si mesmo, como também costuma ser associado à riqueza e ao poder” (p.176). “Em todos os casos, o design é tipicamente grandioso, com uma decoração infinita de superfícies que o faz parecer regido pelo seguinte aforismo: a ligação mais desejável entre dois pontos é uma linha curva” (p.177).
Algumas técnicas ornamentais: complexidade, profusão, exagero, rotundidade, ousadia, fragmentação, variação, colorismo, atividade, brilho.


- Funcional: “É uma metodologia de design estreitamente ligada à regra da utilidade e a considerações de ordem econômica. [...] A principal diferença entre outras abordagens estilísticas e visuais e o estilo funcional é a busca da beleza nas qualidades temáticas e expressivas da estrutura básica e subjacente, em qualquer obra visual” (p.178). O funcionalismo busca encontrar um valor estético intrínseco aos produtos artesanais.
O estilo funcional se associa a técnicas como: simplicidade, simetria, angularidade, previsibilidade, estabilidade, seqüencialidade, unidade, repetição, economia, sutileza, planura, regularidade, agudeza, monocromatismo, mecanicidade.

25 de janeiro de 2008

Conceitos Fundamentais da História da Arte (não-ficção)

Heinrich Wölfflin, 1915, Suíça/Alemanha

Referência no desenvolvimento da teoria estética moderna, Heinrich Wölfflin elaborou, no início do século XX, um importante sistema de conceitos para a compreensão da obra de arte. No presente livro, tal sistema foi aplicado na análise comparativa de dois períodos: o Renascimento e o Barroco.

Wölfflin propôs um esquema baseado em uma série de pares de opostos: linear x pictórico; planimetria x profundidade; forma fechada x forma aberta; pluralidade x unidade; e clareza absoluta x clareza relativa (ou obscuridade). Tais categorias são tipos ideais e funcionam como pólos estilísticos dos quais uma obra de arte mais se aproxima ou afasta.

Nessa elaboração, o Renascimento aparece associado aos conceitos de linearidade, planimetria, forma fechada, pluralidade e clareza absoluta. Por outro lado, o modelo Barroco orbita pelas idéias opostas: pictórico, profundidade, forma aberta, unidade e clareza relativa. Enquanto o autor desenvolve cada uma dessas categorias, exemplos de pintura, escultura e arquitetura são analisados, ilustrando a validade de seu método.

Os conceitos
Escusado será dizer que qualquer esforço em sintetizar as idéias contidas no livro resultará em perda irreparável de qualidade e conteúdo. No entanto, para fins didáticos e de consulta, tal recurso pode ser bastante útil.

1 - Linear x Pictórico
"[...] o estilo linear vê em linhas, o pictórico em massas. Ver de forma linear significa, então, procurar o sentido e a beleza do objeto primeiramente no contorno - [...]; significa, ainda, que os olhos são conduzidos ao longo dos limites das formas e induzidos a tatear as margens. A visão em massa ocorre quando a atenção deixa de se concentrar nas margens, quando os contornos tornam-se mais ou menos indiferentes aos olhos enquanto caminhos a serem percorridos e os objetos, vistos como manchas, constituem o primeiro elemento de impressão. Nesse caso, é irrelevante o fato de tais manchas significarem cores, ou apenas claridades e obscuridades” (p.26).

"No primeiro caso, a ênfase recai sobre os limites dos objetos; no segundo, a obra parece não ter limites. A visão por volumes e contornos isola os objetos: a perspectiva pictórica, ao contrário, reúne-os. No primeiro caso, o interesse está na percepção de cada um dos objetos materiais como corpos sólidos, tangíveis; no segundo, na apreensão do mundo como uma imagem oscilante" (p.18).

2 - Plano e Profundidade
"A arte clássica dispõe as partes de um todo formal em camadas planas, enquanto a arte barroca enfatiza a profundidade. O plano é o elemento da linha, a justaposição em um único plano sendo a forma de maior clareza: a desvalorização dos contornos traz consigo a desvalorização do plano, e os olhos relacionam os objetos conforme sejam eles anteriores ou posteriores[...]" (p.18-19).

“No primeiro caso [arte do século XVI], verifica-se um empenho pela representação no plano, que articula a imagem em camadas dispostas paralelamente à boca de cena; No segundo (arte do século XVII), a tendência a subtrair os planos aos olhos, desvalorizá-los e torná-los insignificantes, na medida em que são enfatizadas as relações entre os elementos que se dispõem à frente e os que se encontram atrás, e o observador se vê obrigado a penetrar até o fundo do quadro" (p.99).

“Todo quadro possui sua profundidade. Entretanto, ela produzirá efeitos diferentes, dependendo de o espaço estar dividido em camadas, ou se apresentar como movimento homogêneo em direção ao fundo” (p.111).

“A verdadeira oposição dos estilos, contudo, é obtida apenas no instante em que o observador já não imagina encontrar-se diante de uma sucessão de setores, e a profundidade, em contrapartida, se impõe como experiência imediata” (p.113).

3 - Forma Fechada e Forma Aberta
"Por forma fechada entendemos aquele tipo de representação que, valendo-se de recursos mais ou menos tectônicos, apresenta a imagem, como uma realidade limitada em si mesma, que, em todos os pontos, se volta para si mesma. O estilo de forma aberta, ao contrário, extrapola a si mesmo em todos os sentidos e pretende parecer ilimitado, ainda que subsista uma limitação velada, assegurando justamente o seu caráter fechado, no sentido estético" (p.168).

“A arte clássica é a arte das verticais e das horizontais bem definidas. Os elementos manifestam-se com total nitidez e precisão. Quer se trate de um retrato ou de uma figura, de um quadro que narre uma história ou de uma paisagem, no quadro predominam sempre as oposições entre as linhas horizontais e as verticais. Todos os desvios são medidos em relação à forma primitiva pura.
Em contrapartida, o barroco apresenta a tendência, não de reprimir esses elementos, mas de dissimular o seu contraste evidente. Uma estrutura tectônica demasiado nítida é vista pelo Barroco como algo rígido demais e contrário à idéia de uma realidade viva." (p.170).

4 - Pluralidade e Unidade
Na arte clássica a totalidade das formas é concebida como uma unidade. "[..] o que se observa é um todo articulado, onde cada componente, claramente identificável, fala por si, podendo, não obstante, ser imediatamente reconhecido como parte integrante de um conjunto, vinculado a um todo formal" (p.212).

"Os artistas do Seicento atêm-se a um motivo principal, ao qual subordinam tudo o mais. O efeito produzido pela imagem já não depende da maneira pela qual os elementos isolados se condicionam e equilibram reciprocamente; pelo contrário, do todo transformado em um fluxo único emergem formas isoladas de caráter absolutamente dominante, mas de maneira tal que, mesmo preservando a sua função diretriz, essas formas não significam para os olhos algo que possa ser considerado à parte ou destacado do todo" (p.213).

No Barroco, as partes de um quadro "[...] não são elementos isolados que se pudessem destacar do todo; eles representam, sim, o auge de um movimento geral. [...] em toda parte, o estilo da multiplicidade e diferenciação dos elementos transforma-se num estilo que, suprimindo valores autônomos, isolados, funde as partes do todo, imprimindo-lhes movimento".

5 - Clareza e Obscuridade
"Enquanto a arte clássica coloca todos os meios de representação a serviço da nitidez formal, o Barroco evita sistematicamente suscitar a impressão de que o quadro tenha sido composto para ser visto e de que possa ser totalmente apreendido pela visão" (p.270).

"O Barroco rejeita esse grau máximo de nitidez. Sua intenção não é a de dizer tudo, quando há detalhes que podem ser adivinhados. Mais ainda: a beleza já não reside na clareza perfeitamente tangível, mas passa a existir nas formas que, em si, possuem algo de intangível e parecem escapar sempre ao observador. O interesse pela forma claramente moldada cede lugar ao interesse pela imagem ilimitada e dinâmica. Por esta razão, desaparecem também os ângulos de visão elementares, ou seja, a pura frontalidade e o perfil exato; o artista busca o caráter expressivo na imagem fortuita" (p.272).

Leis
Segundo Wölfflin, a aplicabilidade dessas categorias não se restringiria apenas à Renascença e ao Barroco; ela poderia ser estendida a todos os períodos da história da arte. Para o autor, esses pares de conceitos têm um caráter universal; eles sintetizam as leis do desenvolvimento da visão humana.

“Todo artista tem diante de si determinadas possibilidades visuais às quais se acha ligado. Nem tudo é possível em todas as épocas. A visão em si possui sua história, e a revelação destas camadas visuais deve ser encarada como a primeira tarefa da história da arte” (p.14).