28 de novembro de 2005

As Intermitências da Morte

José Saramago, 2005, Portugal

Saramago sempre nos presenteia com grandes absurdos. Absurdos impensáveis que estimulam a reflexão e ilustram o que há de mais oculto e cotidiano no espírito humano. Literatura!

Esse romance é como aqueles dilemas éticos para os quais parece não haver soluções. É genial porque escancara a fraqueza humana e nos faz reconhecer que somos uma raça, não de sábios justos, mas de pecadores em essência. Saber-se falho é conhecer-se humano... E “ainda que não se deva desculpar, perdoar sempre se pode” (p.115).

“No dia seguinte ninguém morreu” (p.11). Assim começa essa surpreendente história em que a morte deixa de matar para pregar uma lição aos homens. E é a partir desse evento que toda a densidade da obra se faz mostrar.

Como, então, reagem a sociedade e suas instituições? Quais são as reações dos indivíduos? Dessas questões surge uma fábula muito bem escrita, recheada com o melhor do humor e da ironia de Saramago. Traços que tocam bem na ferida de questões fundamentais, tais como Religião, Governo, Comunicação Social, Filosofia e Ciência.

Veja algumas sobre religião:

“A igreja, senhor primeiro ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras. [...] À igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso” (p.20).

“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca” (p.36).

Cada palavra do romance é essencial, demonstrando a imensa dedicação do autor em seu trabalho de articular significados e produzir uma literatura da mais alta qualidade. Ótima leitura!

“Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas” (p.65). “Porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados” (p.112).

9 de novembro de 2005

Meditações Sobre Filosofia Primeira (não-ficção)

Renato Des Cartes (René Descartes), 1641, França

Descartes ficou sumamente conhecido na história da Filosofia por buscar estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático, para o conhecimento da verdade.

Este tratado, apresenta, ao todo, seis meditações que expõe a progressão do pensamento cartesiano.

O autor inicia sua reflexão propondo a dúvida e o questionamento de tudo, para que, despidos dos preconceitos, possamos alcançar a Verdade. Segundo Descartes: duvidar para eliminar qualquer dúvida. Para tanto, os argumentos expostos indicam ‘enganos’ provocados pelos sentidos e a falta de certeza sobre a realidade vivenciada. Descartes chega à beira do solipsismo*, ao duvidar da existência do mundo material, questionando se a vida não passaria de um sonho ou devaneio.
“Quid igitur erit verum? Fortaffis hoc unum, nihil effe certi. // Que será, então, verdadeiro? Talvez isso somente: nada é certo” (p.42 // p.43).

Nesse momento surge sua primeira constatação (que tantas vezes já foi repetida através do lugar-comum: ‘penso, logo existo’), qual seja, apesar de todas as dúvidas, a mente percebe a impossibilidade de ela própria não existir. Nada, “nunca poderá fazer, porém, que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo” (p.45).

E segue com estas belas palavras: “Eu, eu sou, eu existo, isto é certo. Mas por quanto tempo? Ora, enquanto eu penso, pois talvez pudesse ocorrer também que, se eu já não tivesse nenhum pensamento, deixaria totalmente de ser. [...] Sou, porém, uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente. Mas, qual coisa? Já disse: coisa pensante” (p.49).

Daí pra frente, Descartes intenta provar a existência de Deus, e esse é o ponto chave de sua filosofia, para escapar da idéia solipsista. “Devo examinar se há um Deus e, havendo, se pode ser enganador. Pois, na ignorância disso, não parece que eu possa jamais estar completamente certo de nenhuma outra coisa” (p.73).

A obra prossegue examinando essas questões e extraindo conclusões através desse método que se pretende rigoroso e matemático. Em resumo, o método cartesiano consiste em algumas regras:

{{1. A primeira regra é a evidência: não admitir "nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço evidentemente como tal". Em outras palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção" (preconceitos) e só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho a menor oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o que salta aos olhos, é aquilo de que não posso duvidar, apesar de todos os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar de todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas quadragenária".
2. A segunda, é a regra da análise: "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis".
3. A terceira, é a regra da síntese: "concluir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos mais complexos".
4. A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido"}}.
(Regras, de 1 a 4, retiradas do site http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htm)

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*Solipsismo - Doutrina que considera o eu como única realidade no mundo. Em outros termos, nada existe, exceto a sua mente; ela seria a única realidade da qual se possui certeza absoluta.