26 de abril de 2008

Escravidão e universo cultural na colônia (não-ficção)

Eduardo França Paiva, 2001, Brasil

Logo na orelha da obra, um breve texto do historiador francês, Serge Gruzisnky, faz interessante apresentação da pesquisa elaborada por Eduardo França Paiva. Copio um trecho:

“Como os homens e as mulheres submetidos à escravidão viviam essa condição? Qual podia ser sua margem de manobra? Qual era o lugar dos forros nessa sociedade, de que maneira e por qual preço conquistavam sua liberdade? Quais eram as relações dos escravos e dos forros com os brancos, donos de escravos, quer fossem ricos ou pouco fortunados?
Para responder a estas perguntas e romper os clichês que ainda embaraçam (obstruem) as nossas memórias e historiografias, Eduardo França Paiva explora incansavelmente os arquivos mineiros do século XVIII. [...] Ao mergulhar no laboratório sociocultural extraordinário que constituiu Minas Gerais, o leitor descobrirá uma sociedade complexa, móvel, cheia de contradições, no seio da qual negros e mulatos, homens e mulheres, aparecem integralmente como protagonistas da história do século XVIII”.

Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789 é um trabalho referência da nova historiografia sobre a escravidão no Brasil. A obra lança um novo olhar para a sociedade escravista, enriquecendo nossa compreensão sobre as relações sociais envolvidas nesse contexto. Longe de querer negar a escravidão ou de querer torná-la um palco de amenidades, o objetivo de Eduardo França Paiva é, como já adiantou Gruzisnky, sair do lugar comum e perceber que tanto escravos como senhores foram sujeitos da história na qual viveram e que a dicotomia dominante/dominado explica muito pouco dessa história.

“É através de legados ricos como os deixados nesses papéis [os testamentos e inventários pesquisados pelo autor] que se torna possível, por exemplo, o ataque ao que venho chamando de imaginário do tronco, tão arraigado no entendimento sobre a escravidão brasileira. Isto é, ao imaginário sobre a escravidão e os escravos, construído sobre mitos, exageros e versões ideologizadas ou moldadas pelo pragmatismo político. Versões que de forma caricatural condenam a posteriori os escravos ao trabalho desumano e intenso ou ao castigo corporal, como se a vida desses agentes históricos, com exceção dos que se rebelavam, fugiam ou se aquilombavam, se restringisse a essas balizas. No entanto, os libertos testadores demonstraram em seus relatos que o tronco e os outros instrumentos de coerção física e moral não tiveram, pelo menos em áreas urbanizadas do setecentos, emprego tão intenso e corriqueiro quanto se acredita generalizadamente hoje. Este tipo de violência fora substituído por outros, como as restrições à ascensão social dos forros e as interdições de variada natureza impostas indistintamente a cativos, a libertos e a seus descendentes. Em muitas outras ocasiões o controle violento dos mancípios foi substituído por acordos que interessavam a proprietários e a propriedades e que, freqüentemente, reverteram-se em alforrias individuais e coletivas. E não se tratava de agrupamentos reduzidos numericamente. Ao contrário, refiro-me à maior aglomeração de escravos e de libertos entre as capitanias do Brasil e uma das mais importantes, se não a mais importante, de todo o Novo Mundo escravista, no século XVIII” (p. 24-25).

Sobre uma classe intermediária urbana nas Minas do século XVIII
“O setecentos mineiro é realmente um marco especial para todo o império português. A riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mãos, a miséria fazia parte da vida cotidiana dos núcleos urbanos e de áreas rurais, mas conformara-se uma classe intermediária urbana que tornava aquela sociedade diferenciada. A importância desse grupo provinha diretamente da dimensão quantitativa atingida por ele, assim como de seu poder de influência. Além disso, seus integrantes produziam riqueza, pagavam impostos e eram consumidores pertinazes. Já o sabia bem o Conde das Galveas, governador das Minas, em 1732, quando advertia que o trabalho dos forros rendia impostos necessários ao rei. Exatamente os forros, pois eram eles que constituíam parcela respeitável dessa camada intermediária” (p.26).

Uma economia diversificada
“Livres, libertos e escravos compunham a sociedade que se instalara no que antigamente era chamado de sertões. [...] Mas não era apenas isso. Eles compunham, todos, embora com importância diferenciada, o mercado, o grande, dinâmico e diverso mercado emergido nas Minas do setecentos. Através dessa enorme demanda comercial foram estreitados os contatos entre a Colônia e longínquas praças: Índia, Europa, África. Às Minas chegaram tecidos, pedraria e contas, louças, panelas e utensílios domésticos, calçados, chapéus, luvas, lenços, meias e ornamentos variados, além de certos alimentos e bebidas de proveniência diversificada” (p.26-27).

Uma sociedade complexa
“Chegou, também, gente oriunda de muitos lugares distantes para aí se estabelecer. Os encontros pessoais, materiais e culturais foram inevitáveis e corriqueiros. Resultaram na aproximação entre universos geograficamente afastados, em hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriações, em adaptações e em sobreposição de representações e de práticas culturais. Por conta disso o estudo pretende contribuir para reflexões historiográficas que abarquem extensão ampla” (p.27).

A pesquisa
Eduardo França Paiva estuda, ao todo, 859 testamentos e inventários de homens e mulheres originários de várias partes do Brasil e do mundo ou mesmo nascidos em Minas. O grupo é dividido entre homens livres, homens forros, mulheres livres e mulheres forras.

Entre as conclusões que o autor chegou após a análise desses documentos está o fato de que, mesmo sendo a ascensão social um privilégio dos brancos, o enriquecimento dos negros libertos era possível. Destaque para o sucesso da mulher nesse cenário:

“A ascensão social era privilégio, portanto, de alguns brancos e isso era garantido pelas leis e ordenações que vigoraram na América portuguesa. [...] Mas, quanto ao enriquecimento de libertos e de seus descendentes, isto não foi possível interditar. O fenômeno era muito mais freqüente, claro, nas regiões mais urbanizadas. A possibilidade de ascensão econômica foi concretizada por vários desses antigos escravos e por seus filhos e netos nascidos livres, embora as grandes fortunas coloniais permanecessem entre alvas mãos. [...] Entre os que lograram enriquecer, as mulheres constituíram a maioria, assim como formavam, também, a parcela mais numerosa dos alforriados” (p.67).

Liberdade e preconceito
“Proprietários de escravos, às vezes enriquecidos, libertos do cativeiro, mas sempre estigmatizados pela cor da pele, que denunciava o passado de submissão, a origem presa a grilhões e a indiscutível condição de inferioridade intelectual e cultural. Os forros, mesmos os que experimentavam ascensão econômica, não escapavam da discriminação cultivada abertamente ou de maneira camuflada pela sociedade colonial. De toda forma, o fato de terem se libertado e de terem formado um enorme contingente populacional – algo próximo a 120.000 indivíduos, no final do século XVIII, apenas nas Minas – já é o suficiente para ajuntá-los em agrupamento distinto” (p.68). Para efeito de comparação, a população de escravos nesse período era de cerca de 170.000.

O imaginário do tronco
O autor nos relata a distorcida compreensão da sociedade escravista que vem imperando no senso comum e que passou a ser combatida pela historiografia brasileira produzida a partir da década de 1980:

“A imagem de violência física empregada incessantemente sobre os escravos transformava as relações escravistas coloniais em contatos sempre antagônicos, marcados pela desconfiança, pela revolta e pelo medo. Não obstante, reconheciam-se os cativos como agentes históricos [...] apenas quando se revoltavam, fugiam ou matavam, desconsiderando qualquer outra estratégia de resistência menos evidente que essas. As escravas, sempre, eram exploradas sexualmente e quase nada faziam além do serviço doméstico e da reprodução biológica. A família, entendida sempre a partir de um modelo europeu e cristão, não existia entre os escravos no Brasil, e o mais comum era haver um ou mais escravos reprodutores nas senzalas, responsáveis pela fecundação das fêmeas. Os libertos, quando mencionados, sempre ganhavam e jamais conquistavam suas cartas de alforria. [...] Essas e tantas outras 'verdades' sobre a escravidão tanto povoaram e continuam povoando o imaginário brasileiro” (p.85-86).

A família escrava
Contrariando essas verdades distorcidas, Eduardo França Paiva nos mostra que a formação de famílias entre escravos era um acontecimento bastante comum no seio da sociedade mineira dos setecentos. Na verdade, essa prática, era interessante tanto para senhores como para cativos.

“Sem dúvida alguma, a formação de famílias escravas foi estratégia aproveitada tanto pelos escravos quanto pelos senhores. Se ela representava proteção e solidariedade para os primeiros, também significava maior e melhor controle sobre a escravaria e sobre a sociedade escravista colonial para os segundos” (p.150).

De acordo com o autor, a freqüente presença de famílias escravas promoveu uma relativa estabilidade das relações cotidianas entre proprietários e propriedades. Ela explicaria uma baixa referência a fugas, castigos e torturas, e também estaria relacionada à longevidade dos escravos em Minas Gerais.

As alforrias nas Minas
E foram essas formas flexíveis de convívio entre senhores e cativos que favoreceram acordos que resultavam em alforrias. O autor descreve o interessante processo da coartação, muito usado como meio para a liberdade, que consistia na compra da alforria através do pagamento em parcelas e durante determinado tempo, ao fim do qual a liberdade era alcançada. De acordo com França Paiva, o processo não era regulamentado pela legislação em vigor, mas tratava-se de prática e de direito costumeiros.

“Contrapondo-se, portanto, à idéia de que as alforrias dependiam apenas da boa vontade dos proprietários, os processos de coartação demonstram bem como os maiores interessados, os escravos, conseguiam intervir nessas histórias. Eles ajudaram a moldá-las, assim como participaram efetivamente na construção da própria sociedade escravista colonial” (p.168).

Uma ressalva importante
“Isso não significa, evidentemente, que as relações escravistas nas Minas ou no Brasil tenham sido doces, amenas e não tenham experimentado tensões, conflitos e desacordos. O exagero e o estereótipo, de todas as formas como são empregados, trazem grande prejuízo ao conhecimento” (p.156).

11 de abril de 2008

O queijo e os vermes (não-ficção)

Carlo Ginzburg, 1976, Itália

A obra é um dos mais importantes trabalhos da chamada micro-história, uma vertente historiográfica que defende uma delimitação temática extremamente específica, inclusive em termos de espacialidade e de temporalidade:

“Numa escala de observação reduzida, a análise desenvolve-se a partir de uma exploração exaustiva das fontes, envolvendo a descrição etnográfica e preocupando-se com uma narrativa literária. A micro-história contempla temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas (geográfica ou sociologicamente), às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente figuras anônimas, que passariam despercebidas na multidão” (Wikipedia, acessado em 11/4/2008).

Um personagem in-comum
Em “O queijo e os vermes”, Ginzburg foca sua lente em um personagem aparentemente comum, um camponês europeu do século XVI, mais especificamente um moleiro italiano chamado Domenico Scandella e conhecido como Menocchio.

No entanto, Menocchio tinha algumas características incomuns, como saber ler e escrever. E foi essa habilidade, aliada a uma forte curiosidade e atitude questionadora, que fez desse “simples” moleiro um alvo para a Inquisição – Menocchio ousou criar e expor idéias heterodoxas sobre Deus e fé e acabou sendo processado, preso e morto como herege.

Algumas dessas idéias, nas palavras do próprio moleiro:

“[...] 'Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael' [...]" (p.43).

“[...] 'E me parece que na nossa leio papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruinam os pobres' [...]" (p.47).

“[...] 'A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo pra todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão [...] Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe. [...] Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso' [...]" (p.48).

“[...] 'Eu penso que que cada um acha que sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor' [...]" (p.101).

Um clássico
A partir do estudo dos autos de condenação do moleiro italiano, Ginzburg esboça uma teoria bem mais ampla sobre as relações e trocas entre a cultura de massas e a cultura das classes altas (circularidade cultural), e sobre os vestígios do pensamento pagão ainda em fins da idade média.

O brilhante trabalho de reconstrução do cotidiano e das idéias de Menocchio e a abordagem de importantes questões metodológicas fazem de “O queijo e os vermes” um marco da reflexão sobre a escrita da história, suas dificuldades, desafios e possibilidades.

Leitura imperdível!

6 de abril de 2008

História & Livro e Leitura (não-ficção)

André Belo, 2002, Brasil

“Este livro é uma reflexão em torno da história do livro. Não se trata, porém, de apresentar aqui ao leitor uma descrição de como foi escrito e feito o livro ao longo dos tempos [...] Trata-se antes de falar do livro como um objeto que tem uma história e de mostrar como essa história tem sido contada pelos historiadores” (p.15), nos informa o autor.

Nos dois primeiros capítulos da obra, André Belo faz um pouco da história da história do livro, “vendo como ela se prolongou numa história da leitura e como ela se tornou num terreno de diálogo entre diferentes áreas científicas e acadêmicas” (p.15). O atual momento da pesquisa na área é abordado no terceiro e último capítulo, no qual o autor revela que “a investigação atual se projeta bem para além das suas fronteiras tradicionais, limitadas ao livro impresso e à história moderna européia, abrangendo diferentes regiões geográficas, cronologias, suportes da escrita e meios de comunicação” (p.15).

O impacto da tipografia
De acordo com André Belo, o debate sobre a importância da invenção da tipografia nasceu com a publicação da obra A revolução da cultura impressa, da historiadora norte-americana Elisabeth Eisenstein.

“[...] mais do que um mero agente de uma difusão alargada do escrito e da imagem, a imprensa foi responsável, segundo Eisenstein, por alterações qualitativas nas operações intelectuais associadas à leitura e à compreensão dos textos. [...] Para Eisenstein, o objeto impresso define uma cultura original, qualitativamente diferente da cultura manuscrita que existia anteriormente” (p.23).

Na argumentação de André Belo, as idéias de Eisenstein davam continuidade, no meio historiográfico, às teses defendidas pelo teórico da cultura e da comunicação de massas Marshal McLuhan.

“Em A Galáxia de Gutenberg (MCLUHAN, 1977/1962), esse autor colocou em oposição diferentes modos de comunicação ao longo da história das sociedades: na Antiguidade e na Idade Média existiu baseada no manuscrito e na oralidade; nesse ambiente, a leitura em voz alta e a audição coletiva eram o modo de transmissão e recepção dos discursos; a ela seguiu-se uma cultura do livro impresso, em que a troca de idéias se fez predominantemente por meio da leitura individual, feita em silêncio, em que a visão veio substituir a audição e a voz como sentido dominante na comunicação. Segundo esse autor, a invenção de Gutenberg constituiu uma ruptura fundamental na história da cultura, dando origem a um novo modo de percepção, a do 'homem tipográfico'. As teses de McLuhan, que tinham por trás a idéia fundamental de que o 'meio [de comunicação] é a mensagem', foram desenvolvidas no preciso momento em que a televisão, o rádio e o telefone se afirmavam como meios de comunicação de massa. Para o autor, o seu aparecimento marcava o início do fim da galáxia de Gutenberg, isto é, o fim da era do predomínio da leitura visual e a entrada numa nova constelação da comunicação em que, por meio da convivência permanente entre texto, imagem e som, os sentidos associados à oralidade recuperariam importância” (p.24).

Mas André Belo apresenta argumentos que representam importantes ressalvas à possível dicotomia entre uma era do manuscrito e uma outra, a era do impresso.

“A idéia de que existiu uma ruptura entre a era do manuscrito e a era do impresso tem sido combatida por vários autores, com destaque para [...] Roger Chartier. [...] Chartier fala também de uma 'cultura do impresso' nascida com a invenção de Gutenberg. No entanto, ela não deve ser colocada em oposição a uma cultura do manuscrito, antes deve ser considerada sua herdeira. Se a imprensa representa uma alteração fundamental nas capacidades técnicas de reprodução dos textos, ela perde seu caráter revolucionário quando comparada com outras mudanças consideradas por Chartier tão ou mais decisivas, como é o caso do aparecimento do livro com a forma que conhecemos ainda hoje, verificado entre os séculos II e IV da era cristã. Antes da tipografia, com efeito, o livro era escrito e copiado à mão, era normalmente menos portátil do que os livros atuais, mas já era um códice, isto é, um conjunto de cadernos costurados uns aos outros e encadernados. Na opinião de Chartier, o que permaneceu no livro depois de Gutenberg foi mais importante do que o que mudou: os sinais que facilitam a orientação do leitor no interior do livro (enumeração de páginas, de colunas ou linhas) e no interior de cada página (títulos de capítulos e letras iniciais ornamentadas) nasceram no tempo do livro manuscrito, o mesmo acontecendo com os índices alfabéticos ou por assuntos. A imprensa não criou um objeto novo e não obrigou a novos gestos da parte do leitor, ao contrário do que aconteceu com o aparecimento do códice (CHARTIER, 1994). Ela também não alterou, pelo menos inicialmente, o conteúdo dos textos disponíveis: os Padres da Igreja, os clássicos latinos e gregos, os textos religiosos ou laicos de autores consagrados foram os primeiros livros impressos” (p.24-23).

O sucesso do códice quase nos faz esquecer, prossegue o autor, que o livro teve outros formatos – rolos de papiro ou de pergaminho (cuja materialidade implicava num tipo de leitura diverso da do códice, que facilita a navegação dentro do texto); tabuinhas de argila – e que a escrita teve outros suportes – tecidos, conchas, cerâmica, marfim, folhas de palmeira.

“Cada uma dessas diferentes formas de livro implicou, ao longo de uma história já com alguns milênios, diversos modos de escrever e ler. Obrigou ao uso de um determinado tipo de instrumento, a uma certa postura corporal, a um certo modo de organizar o texto (ou a imagem), dependendo da textura do suporte ou de seu formato” (p.27).

Técnica x Cultura
Nessa altura, André Belo propõe as seguintes questões: “qual a relação entre as mudanças tecnológicas e as mudanças culturais? Podemos dizer que são sobretudo as inovações técnicas que produzem transformações no modo de pensar, de ler e de conhecer ou, pelo contrário, que são necessidades culturais e sociais que dão origem ao aparecimento de novas tecnologias de difusão do saber?” (p.28).

“Chartier, uma vez mais, generaliza: a invenção da tipografia não revolucionou a forma do livro, nem seu conteúdo, nem a maneira de ler. Não podemos dizer que as inovações na técnica de reprodução dos textos produzam, por si só, revoluções na relação com o escrito. Na longa história do livro, as grandes alterações foram produzidas por transformações culturais e sociais mais profundas. [...] contra o que considera um 'determinismo tecnológico', Chartier afirma que as técnicas não existem para além do que os seus produtores e utilizadores fazem delas (CHARTIER, 2000, p. 31). No Ocidente, a imprensa, como inovação no modo de reproduzir os textos, necessitou de várias outras condições para se afirmar, a começar pela disponibilidade de uma matéria-prima fundamental como o papel. Contrariamente, na China do século XI e na Coréia do século XIII, os caracteres móveis, em terracota e em metal já eram conhecidos, mas a escala de sua utilização permaneceu reduzida por razões políticas e culturais (Idem, 1994). Na primeira metade do século XIX, a imprensa conheceu sua primeira industrialização, com a introdução da tipografia mecânica a vapor e da máquina de papel contínuo. Mas as tiragens dos livros e periódicos permaneceram modestas diante das novas capacidades produtivas. Só na segunda metade do século XIX se verificou o aparecimento da grande tiragem nos jornais e outras publicações de baixo custo, trazendo consigo importantes novidades no número de leitores atingidos e nos tipos de gêneros publicados. Isto não aconteceu apenas por razões técnicas, mas também por causa de fatores econômicos e decisões editoriais, por sua vez impossíveis de obter sucesso sem o apoio de outros fatores culturais, como o desenvolvimento da escolarização (Idem, 1995)” (p.29 e 30).

No entanto, alerta André Belo, essa perspectiva de Chartier apresenta um inconveniente, qual seja, o risco de diminuirmos o impacto social que a imprensa gerou e sua capacidade para ser um agente de mudança. Em nenhuma hipótese, a importância do surgimento da imprensa pode ser desconsiderada.

“Mesmo que o livro manuscrito tenha permanecido durante bastante tempo como modelo seguido pelo livro impresso, a nova técnica de reprodução dos textos multiplicou claramente as possibilidades de difusão geográfica das obras relativamente à cópia manuscrita. E também as suas capacidades de conservação: a multiplicação de uma obra em centenas ou milhares de exemplares garantia, bem melhor do que o manuscrito, a sua sobrevivência à passagem do tempo” (p.30 e 31).

O que é a história do livro e da leitura?
“Para a revista Book History, [...] a história do livro abrange 'toda a história da comunicação escrita: a criação, a disseminação, os usos do manuscrito e do impresso em qualquer suporte, incluindo livros, jornais periódicos, manuscritos e outros objetos impressos de vida efêmera'. O leque de interesses da revista estende-se assim aos seguintes domínios: 'história social, cultural e econômica da autoria, publicação, impressão, artes gráficas, direitos de autor, censura, comércio e a distribuição de livros, bibliotecas, competências de leitura e escrita, crítica literária, hábitos de leitura, teoria da recepção literária'” (p. 37).

“No entender de Robert Darnton, [...] o objetivo da história do livro é 'compreender como as idéias foram transmitidas através da imprensa e como a exposição à palavra impressa afetou o pensamento e o comportamento da humanidade durante os últimos quinhentos anos” (p.38).

“Donald F. McKenzie [...] define a especialidade como uma 'sociologia dos textos'. Estudar o passado do livro é estudar o seu conteúdo considerando toda a vasta gama de realidades sociais que os textos envolvem e com as quais interagem, em cada momento de sua produção, transmissão e consumo (MCKENZIE, 1986, p. 6-7)” (p. 38).

“Por fim, para o Institut d'Historie du Livre, um órgão francês que reúne várias instituições ligadas ao livro, entre universidades, museus e bibliotecas, o objeto alargado de uma história do livro é a comunicação escrita. Trata-se de uma área totalmente interdisciplinar em que dialogam a história, a sociologia, a antropologia e as ciências da linguagem e da informação” (p.38-39).

Uma síntese
“Essas definições são razoavelmente convergentes num aspecto essencial: da história do livro atual faz parte muito mais do que o simples estudo dos procedimentos técnicos de escrita e reprodução de um livro até ele chegar ao leitor [...] Mais do que apenas o livro como objeto material, essa história compreende a comunicação e todos os processos sociais, culturais e literários que os textos afetam e envolvem. Ela integra um conjunto de disciplinas específicas de tal maneira vasto que é impossível resumi-lo aqui” (p.39).

O leitor reescreve o livro
André Belo nos apresenta também o problema inovador da pesquisa sobre as diferentes modalidades de consumo do livro pelos leitores, abordagem que trouxe entendimentos inovadores como o fato de que a leitura é (e sempre foi) uma prática acompanhada socialmente (ou seja, não é uma prática solitária, sofrendo condicionamentos) e a existência de uma pluralidade de direções de leitura:

“O leitor, de certa maneira, reescreve o texto que lê. Por isso, a página impressa não é uma letra morta: ela é o lugar onde se produz o encontro, sempre diferente, entre a palavra já escrita e os novos sentidos que os leitores lhe vão dando. Como escreveu Jorge Luís Borges, uma literatura distingue-se de uma outra menos pela letra do texto do que pela forma como ela é lida. Essa idéia ajusta-se perfeitamente a uma interrogação histórica: enquanto o texto permanece uma unidade fixa, os leitores em diferentes épocas vão-se apropriando dele de forma plural; como afirmou Levenson, citado por Bordieu, 'um livro muda pelo fato de não mudar enquanto o mundo muda' (BORDIEU e CHARTIER, 1985, p. 236)” (p.52-53).

Mais adiante, depois de elaborar um apanhado de possíveis fontes de pesquisa e problematizar questões metodológicas no campo da história do livro e da leitura, André Belo faz uma interessante observação sobre o papel do leitor no universo dos textos: “O sentido desse texto, de qualquer texto, depende sempre da leitura que dele será feita” (p.103).

2 de abril de 2008

História & Fotografia (não-ficção)

Maria Eliza Linhares Borges, 2003, Brasil

Contribuir para um diálogo fértil entre História e Fotografia, essa é a intenção principal deste texto que aborda critérios teórico-metodológicos acerca da utilização de imagens fotográficas no campo da análise histórica.

O livro analisa, inicialmente, as razões que “levaram uma parcela significativa da comunidade de historiadores do século XIX a estabelecer uma hierarquia de importância entre as fontes de pesquisa histórica, a classificar as fontes visuais como documentos de pesquisa de segunda categoria e, finalmente, a não incluir a fotografia no rol dos documentos de pesquisa em História” (p.12).

Em seguida, a autora busca mostrar que, “embora rejeitada como fonte de pesquisa histórica, a fotografia introduziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundo moderno, rapidamente incorporado por homens e mulheres do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Sem pretender desenvolver uma história da fotografia, elegemos algumas representações fotográficas de maior expressão no século para, a partir delas, buscarmos compreender os usos e as funções sociais a elas atribuídas pelos fotógrafos, profissionais e amadores, dos anos oitocentos. Simultaneamente a esse descortinar do olhar fotográfico introduzimos alguns dos critérios que hoje orientam a análise dessa importante fonte de pesquisa histórica” (p.12-13).

Por fim, Maria Eliza trata da relação hoje existente entre a história-conhecimento e o documento fotográfico, fazendo uma reflexão sobre a natureza da linguagem fotográfica e realizando “uma breve incursão sobre as viagens fotográficas, de estrangeiros e nacionais, através do Brasil imperial e republicano” (p.13).

A fotografia para a História Cultural
Para o novo paradigma histórico da História Cultural, a questão não é propor a utilização da fotografia como recurso ilustrativo do texto histórico, tampouco como documento que tem a pretensão de espelhar fielmente a realidade (ilusão bastante comum quando se fala de imagens fotográficas). A fotografia agora ascende à condição de fonte, de objeto capaz de oferecer informações importantes para a elaboração de interpretações históricas.

Maria Eliza descreve esse novo papel da imagem para a historiografia contemporânea:

“Quando as imagens visuais, dentre elas a fotografia, são utilizadas como fontes de pesquisa histórica, é porque funcionam como mediadoras e não como reflexo de um dado universo sociocultural. Integram um sistema de significação que não pode ser reduzido ao nível das crenças formais e conscientes. Pertencem à ordem do simbólico, da linguagem metafórica. São portadoras de estilos cognitivos próprios” (p.18-19).

“[...] as imagens fotográficas, assim como as literárias e sonoras, propõem uma hermenêutica sobre as práticas sociais e suas representações. Funcionam como sinais de orientação, como linguagens. Quando utilizadas com fins compreensivos e explicativos, elas demandam não apenas o emprego de metodologias afinadas com seus estilos cognitivos – que ajudam a ler e interpretar suas ambigüidades e seus silêncios – como também o cruzamento com outros tipos de documentos” (p.72).

“Ao lidar com as imagens visuais, o historiador as encara como um documento, como uma construção cultural, cuja confecção e difusão têm uma história que não pode ser desconhecida pela análise histórica. Sabe que as formas e os conteúdos imagéticos podem sofrer alterações, voluntárias ou não” (p.81).

A imagem é fixa, o sentido não é
“Hoje não mais se duvida da natureza polissêmica da imagem, da variabilidade de sentidos de suas formas de produção, emissão e recepção. Sabe-se que uma imagem visual é uma forma simbólica cujo significado não existe per si, quer dizer, ''lá dentro', como coisa dada que pré-existe ao olhar, à intenção de quem o produz'. Vista sob essa ótica, ela deixa de ser espelho ou duplicação do real, como queriam os historiadores da historiografia metódica. Apresenta-se como uma linguagem que não é verdadeira nem falsa. Seus discursos sinalizam lógicas diferenciadas de organização do pensamento, de ordenação dos espaços sociais e de medição dos tempos culturais. Constituem modos específicos de articular tradição e modernidade. Por tudo isso, sabe-se que uma dada imagem é uma representação do mundo que varia de acordo com os códigos culturais de quem a produz” (p.80).