7 de maio de 2009

Espelhos

Eduardo Galeano, Uruguai, 2008

Trascrevo abaixo artigo publicado no jornal Página 12, da Argentina, no qual Eduardo Galeano fala sobre sobre sua mais nova obra, "Espelhos - Uma história quase universal".

O artigo original pode ser encontrado aqui. A tradução foi retirada daqui.

Paradoxo Andante

Cada dia, ao ler os jornais, assisto a uma aula de história.

Os jornais ensinam-me pelo que dizem e pelo que silenciam.

A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas. Talvez por isso os seus silêncios digam mais que as suas palavras e muitas vezes as suas palavras revelam, mentindo, a verdade.

Dentro em breve será publicado um livro meu chamado Espejos [Espelhos]. É algo assim como uma história universal, e desculpem o atrevimento. "Posso resistir a tudo, menos à tentação", dizia Oscar Wilde, e confesso que sucumbi à tentação de contar alguns episódios da aventura humana no mundo, do ponto de vista dos que não apareceram na foto.

Pode-se dizer que não se trata de factos muito conhecidos.

Resumo aqui alguns, apenas uns poucos.

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Quando foram desalojados do Paraíso, Adão e Eva mudaram-se para África, não para Paris.

Algum tempo depois, quando os seus filhos já se tinham lançado pelos caminhos do mundo, foi inventada a escrita. No Iraque, não no Texas.

Também a álgebra foi inventada no Iraque. Fundou-a Mohamed al Jwarizmi, há mil e duzentos anos, e as palavras algoritmo e algarismo derivam do seu nome.

Os nomes costumam não coincidir com o que nomeiam. No British Museum, por exemplo, as esculturas do Parténon chamam-se "mármores de Elgin", mas são mármores de Fídias. Elgin era o nome do inglês que as vendeu ao museu.

As três novidades que tornaram possível o Renascimento europeu, a bússola, a pólvora e a imprensa, tinham sido inventadas pelos chineses, que também inventaram quase tudo o que a Europa reinventou.

Os hindus souberam antes de todos que a Terra era redonda e os maias tinham criado o calendário mais exacto de todos os tempos.

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Em 1493, o Vaticano presenteou a América à Espanha e obsequiou a África negra a Portugal, "para que as nações bárbaras sejam reduzidas à fé católica". Naquele tempo, a América tinha quinze vezes mais habitantes que a Espanha e a África negra cem vezes mais que Portugal.

Tal como ordenara o Papa, as nações bárbaras foram reduzidas. E muito.

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Tenochtitlán, o centro do império asteca, era de água. Hernán Cortés demoliu a cidade pedra por pedra e, com os escombros, tapou os canais por onde navegavam duzentas mil canoas. Esta foi a primeira guerra da água na América. Agora, Tenochtitlán chama-se México DF. Por onde corria a água, correm agora os automóveis.

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O monumento mais alto da Argentina foi erguido em homenagem ao general Roca, que no século XIX exterminou os índios da Patagónia.

A avenida mais longa do Uruguai tem o nome do general Rivera, que no século XIX exterminou os últimos índios charruas.

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John Locke, o filósofo da liberdade, era accionista da Royal Africa Company, que comprava e vendia escravos.

No momento em que nascia o século XVIII, o primeiro dos bourbons, Felipe V, inaugurou o seu reinado assinando um contrato com o primo, o rei da França, para que a Compagnie de Guinée vendesse negros na América. Cada monarca ficava com 25 por cento dos lucros.

Nomes de alguns navios negreiros: Voltaire, Rousseau, Jesus, Esperança, Igualdade, Amizade.

Dois dos Pais Fundadores dos Estados Unidos desvaneceram-se na névoa da história oficial. Ninguém se recorda de Robert Carter nem de Gouverner Morris. A amnésia recompensou os seus actos. Carter foi a única personalidade eminente da independência que libertou os seus escravos. Morris, redactor da Constituição, opôs-se à cláusula que estabelecia que um escravo equivalia às três quintas partes de uma pessoa.

"O nascimento de uma nação" , a primeira super-produção de Hollywood, foi estreado em 1915, na Casa Branca. O presidente, Woodrow Wilson, aplaudiu-a de pé. Ele era o autor dos textos do filme, um hino racista de louvor ao Ku Klux Klan.

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Algumas datas:

Desde o ano 1234, e durante os sete séculos seguintes, a Igreja Católica proibiu que as mulheres cantassem nos templos. As suas vozes eram impuras, devido àquele caso da Eva e do pecado original.

No ano de 1783, o rei da Espanha decretou que não eram desonrosos os trabalhos manuais, os chamados "ofícios vis", que até então acarretavam a perda da fidalguia.

Até ao ano de 1986 foi legal o castigo das crianças, nas escolas da Inglaterra, com correias, varas e cacetes.

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Em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, em 1793 a Revolução Francesa proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A militante revolucionária Olympia de Gouges propôs então a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A guilhotina cortou-lhe a cabeça.

Meio século depois, outro governo revolucionário, durante a Primeira Comuna de Paris, proclamou o sufrágio universal. Ao mesmo tempo, negou o direito de voto às mulheres, por unanimidade menos um: 899 votos contra, um a favor.

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A imperatriz cristã Teodora nunca disse que era uma revolucionária, nem nada que se parecesse. Mas há mil e quinhentos anos o império bizantino foi, graças a ela, o primeiro lugar do mundo onde o aborto e o divórcio foram direitos das mulheres.

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O general Ulisses Grant, vencedor da guerra do Norte industrial contra o Sul escravagista, foi a seguir presidente dos Estados Unidos.

Em 1875, respondendo às pressões britânicas, respondeu:

- Dentro de duzentos anos, quando tivermos obtido do proteccionismo tudo o que ele nos pode proporcionar, também nós adoptaremos a liberdade de comércio.

Assim sendo, em 2075, o país mais proteccionista do mundo adoptará a liberdade de comércio.

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"Lootie", ("Saquezinho") foi o primeiro cão pequinês a chegar à Europa.

Viajou para Londres em 1860. Os ingleses baptizaram-no assim porque era parte do saque extorquido à China no fim das longas guerras do ópio.

Vitória, a rainha narcotraficante, tinha imposto o ópio a tiros de canhão. A China foi convertida num país de drogados, em nome da liberdade, a liberdade de comércio.

Em nome da liberdade, a liberdade de comércio, o Paraguai foi aniquilado em 1870. Ao final de uma guerra de cinco anos, este país, o único das Américas que não devia um centavo a ninguém, inaugurou a sua dívida externa. Às suas ruínas fumegantes chegou, vindo de Londres, o primeiro empréstimo. Foi destinado a pagar uma enorme indemnização ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai. O país assassinado pagou aos países assassinos pelo trabalho que tinham tido a assassiná-lo.

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O Haiti também pagou uma enorme indemnização. Desde que em 1804 conquistou a sua independência, a nova nação arrasada teve de pagar à França uma fortuna, durante um século e meio, para expiar o pecado da sua liberdade.

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As grandes empresas têm direitos humanos nos Estados Unidos. Em 1886, o Supremo Tribunal de Justiça estendeu os direitos humanos às corporações privadas, e assim continua a ser.

Poucos anos depois, em defesa dos direitos humanos das suas empresas, os Estados Unidos invadiram dez países, em diversos mares do mundo.

Então, Mark Twain, dirigente da Liga Anti-imperialista, propôs uma nova bandeira, com caveirinhas em vez de estrelas. E outro escritor, Ambroce Bierce, confirmou:

- A guerra é o caminho escolhido por Deus para nos ensinar geografia.

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Os campos de concentração nasceram em África. Os ingleses iniciaram a experiência, e os alemães desenvolveram-na. Depois disso, Hermann Göring aplicou na Alemanha o modelo que o seu pai tinha testado, em 1904, na Namíbia. Os mestres de Joseph Mengele tinham estudado, no campo de concentração da Namíbia, a anatomia das raças inferiores. As cobaias eram todas negras.

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Em 1936, o Comité Olímpico Internacional não tolerava insolências. Nas Olimpíadas de 1936, organizadas por Hitler, a selecção de futebol do Peru derrotou por 4 a 2 a selecção da Áustria, o país natal do Führer. O Comité Olímpico anulou o jogo.

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Não faltaram amigos a Hitler. A Rockefeller Foundation financiou investigações raciais e racistas da medicina nazi. A Coca-Cola inventou a Fanta, em plena guerra, para o mercado alemão. A IBM tornou possível a identificação e a classificação dos judeus, e essa foi a primeira façanha em grande escala do sistema de cartões perfurados.

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Em 1953, explodiu o protesto operário na Alemanha comunista.

Trabalhadores tomaram as ruas e os tanques soviéticos dedicaram-se a calar-lhes a boca. Então Bertolt Brecht sugeriu: Não seria mais fácil que o governo dissolvesse o povo e elegesse outro?

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Operações de marketing. A opinião pública é o target. As guerras vendem-se mentindo, tal como se vendem os carros.

Em 1964, os Estados Unidos invadiram o Vietname, porque o Vietname tinha atacado dois navios dos Estados Unidos no Golfo de Tonkin. Quando a guerra já tinha trucidado uma multidão de vietnamitas, o ministro da Defesa, Robert McNamara, reconheceu que o ataque de Tonkin não existira.

Quarenta anos depois, a história repetiu-se no Iraque.

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Milhares de anos antes da invasão norte-americana levar a civilização ao Iraque, nesta terra bárbara nasceu o primeiro poema de amor na história mundial. Na língua suméria, escrito no barro, o poema narrou o encontro de uma deusa e um pastor. Inanna, a deusa, amou nessa noite como se fosse mortal. Dumuzi, o pastor, foi imortal enquanto durou essa noite.

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Paradoxos andantes, paradoxos estimulantes:

O Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais belas esculturas da era colonial americana.

O livro de viagens de Marco Pólo, aventura da liberdade, foi escrito na prisão em Génova.

"Don Quixote de La Mancha", uma outra aventura da liberdade, nasceu na prisão de Sevilha.

Foram netos de escravos os negros que criaram o jazz, a mais livre das músicas.

Um dos melhores guitarristas de jazz, o cigano Django Reinhardt, só tinha dois dedos na sua mão esquerda.

Não tinha mãos Grimod de Reynière, o grande mestre da cozinha francesa. Com garfos escrevia, cozinhava e comia.

17 de fevereiro de 2009

O velho e o mar

Ernest Hemingway, 1952, EUA

O livro narra a saga de Santiago, um velho pescador que, incomodado com a maré de azar que o faz acumular 84 dias sem fisgar nada em seu anzol, resolve se aventurar sozinho em alto mar, em busca do peixe que mudará sua sorte.

"O que aconteceu é que acabou a minha sorte. Mas quem sabe? Talvez hoje ela volte. Cada dia é um novo dia. É melhor ter sorte. Mas eu prefiro fazer as coisas sempre bem. Então, se a sorte me sorrir, estou preparado" (p.35).

E como pode-se imaginar, o destino recompensou aquele que ousou transpor os limites. O animal mordeu a isca. Santiago estava agora diante do maior desafio de sua vida, um colossal peixe nunca antes visto por ele, experiente pescador. Nesse momento, começa o opressor embate entre um velho homem e a poderosa natureza.

"'A sua escolha inicial fora se esconder na águas escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e traições. A minha escolha fora ir procurá-lo onde jamais ninguém ousaria ir.' Sim, onde jamais alguém ousara ir. E agora estavam ligados um ao outro e assim se encontravam desde o meio-dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a outro"
(p.54).

Mas Santiago não é qualquer homem. É um herói. Não tem superpoderes, simplesmente é capaz de unir intelecto e determinação em alquimia que produz uma força sobre-humana.

"- Peixe - falou ele - não o largo enquanto viver"
(p.56).

"'Por que teria saltado? Quase que diria que veio à tona d'água só para mostrar-me como é grande. Agora já sei, seja lá como for', pensou o velho. 'Gostaria de lhe poder mostrar que espécie de homem sou eu. Mas, nesse caso, ele veria a cãibra que tenho. É melhor que ele julgue que valho mais para ter mais possibilidades do meu lado. Gostaria de ser aquele peixe e trocaria de bom grado a minha vontade e a minha inteligência para ter tudo o que ele tem'"
(p.67).

No mar, em plena luta aflita, o pescador se vê assolado pela solidão. Mas também encontra companhia.

"As primeiras estrelas mostravam-se no céu. Não sabia bem os nomes das estrelas, mas as conhecia e sabia que dentro de pouco tempo apareceriam todas e teria o conforto da companhia daquelas amigas tão distantes"
(p.76).

Em sua aventura, Santiago é um exemplo de superação, de esforço e paixão por seus objetivos. Sua história nos mostra a capacidade humana de desafiar e de sobrepujar as piores adversidades. E é exatamente nesse desafio que reside sua vitória, sua redenção, mesmo que a seguir a natureza cobre seu preço final.

"'Você está me matando, peixe', pensou o velho pescador. 'Mas tem o direito de fazê-lo. Nunca vi nada mais bonito, mais sereno ou mais nobre do que você, meu irmão. Venha daí e mate-me. Para mim tanto faz quem mate quem, por aqui'"
(p. 93).

"'Além disso', pensou, 'tudo mata tudo de uma maneira ou de outra. Pescar mata-me tal como me faz viver'"
(p.106).

Uma história de viver e de lutar, porque a vida só pode se desenrolar se estiver acompanhada do risco:

"- Repouse bem, pequena ave - aconselhou o velho. - Depois siga viagem e arrisque-se como qualquer homem, pássaro ou peixe"
(p.58).

Uma história do mar, esse misterioso universo que nos assombra e nos fascina:

"O velho pensava sempre no mar como sendo
la mar, que é como lhe chamam em espanhol quando verdadeiramente o querem bem. Às vezes aqueles que o amam lhe dão nomes vulgares, mas sempre como se fosse uma mulher. Alguns dos pescadores mais novos, aqueles que usam bóias como flutuadores para as suas linhas e têm barcos a motor, comprados quando os fígados dos tubarões valiam muito dinheiro, ao falarem do mar dizem el mar, que é masculino. Falam do mar como de um adversário, de um lugar ou mesmo de um inimigo. Entretanto, o velho pescador pensava sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que concedesse ou negasse grandes favores; mas se o mar praticasse selvagerias ou crueldades era só porque não podia evitá-lo. 'A lua afeta o mar tal como afeta as mulheres', refletiu o velho" (p.32).

3 de fevereiro de 2009

Romeu e Julieta

William Shakespeare, 1595-6, Inglaterra

O que dizer sobre esta famosíssima obra da literatura universal? Diria eu que trata-se de uma história de amor? Não é tudo... Diria que versa sobre a alma humana? Poderia... Entretanto, qualquer coisa que disser será precária se comparada à complexidade e riqueza do texto shakesperiano que, assim como as grandes obras do gênio humano, oferece-nos uma gama infinda de interpretações, níveis variados de leitura e uma profusão de sentimentos despertados. Shakespeare é um acontecimento e será tanto melhor aproveitado se for vivido em sua inteireza.

Essa pequena seleção de belíssimos trechos é mais do que suficiente para ratificar meu argumento:

O ódio dá muito
trabalho por aqui; mas mais, o amor.
Então, amor brigão! Ó ódio amoroso!
És tudo, sim; do nada foste criado
desde o princípio. Leviandade grave,
vaidade séria, caos imano e informe
de belas aparências, chumbo leve,
fumaça luminosa, chama fria,
saúde doente, sono sempre esperto,
que não é nunca o que é. Eis aí o amor
que eu sinto e que me causa apenas dor.
(Romeu - Ato I, Cena I)

O amor é dos suspiros a fumaça;
puro, é fogo que os olhos ameaça;
revolto, um mar de lágrimas de amantes...
Que mais será? Loucura temperada,
fel ingrato, doçura refinada.
(Romeu - Ato I, Cena I)

Mas o amor, em tamanha extremidade,
sabe fazer da dor felicidade.
(Prólogo - Ato II)

Meu inimigo é apenas o teu nome.
Continuarias sendo o que és, se acaso
Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio?
Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto,
nem parte alguma que pertença ao corpo.
Sê outro nome. Que há num simples nome?
O que chamamos rosa, sob uma outra
designação teria igual perfume.
Assim Romeu, se não tivesse o nome
de Romeu, conservara a tão preciosa
perfeição que dele é sem esse título.
Romeu, risca teu nome, e, em troca dele,
que não é parte alguma de ti mesmo,
fica comigo inteira.
(Julieta - Ato II, Cena II)

Essas violentas alegrias têm fim também violento,
falecendo no tempo, como a pólvora
e o fogo, que num beijo se consomem.
O mel mais delicioso é repugnante
por sua própria delícia, confundindo
com seu sabor o paladar mais ávido.
Tem, pois, moderação, que o vagaroso,
como o apressado, atrasam-se do pouso.
(Frei Lourenço - Ato II, Cena VI)

Mais rico o sentimento em conteúdo
do que em palavras, sente-se orgulhoso
com a própria essência, não com os ornamentos.
(Julieta - Ato II, Cena VI)

Ainda e sempre em lágrimas? Que é isso?
Sempre a chover? Num corpo pequenino,
o mar imitar queres, barco, ventos?
Pois teus olhos, a que de mar eu chamo,
fluxo e refluxo mostram, só de lágrimas;
teu corpo é o barco nesse mar salgado;
teus suspiros, os ventos, que em conflito
permanente com as lágrimas se encontram
e que hão de soçobrar-te o frágil corpo
tão maltratado pela tempestade,
se não fizer a tempo calmaria.
(Capuleto - Ato III, Cena V)

Quão doce deve ser o amor possuído
se assim tão venturoso é sua sombra!
(Romeu - Ato V, Cena I)

Triunfe o amor, e eis tudo resolvido.
(Julieta - Ato IV, Cena I)