14 de junho de 2011

A rosa do povo

Carlos Drummond de Andrade, 1945, Brasil

Considerado um dos livros mais importantes do poeta itabirano, "A rosa do povo" foi escrito entre os anos de 1943 e 1945, em plena Segunda Guerra Mundial.

Mas o que posso dizer de especial sobre a obra? Talvez o melhor seja não afirmar nada. Racionalizar pra quê, quando o melhor é sentir? Não me arriscarei em análises, interpretações e referências - a mim falta o conhecimento do especialista. Melhor é fruir a dor e a beleza de versos tão poderosos e universais.

Fiquemos com os versos então; alguns que selecionei pelo particular e anti-científico método do espanto, do estranhamento e da admiração.


Sou um homem livre
mas levo uma coisa.

Não sei o que seja.
Eu não a escolhi.
Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.

Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.
(do poema Carrego Comigo)


As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se
na pedra
(do poema Nosso Tempo)


pois a hora mais bela
surge da mais triste
(do poema Uma Hora e Mais Outra)


O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
(do poema Passagem de Ano)


Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
(do poema Passagem da Noite)


Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
(do poema Ontem)


Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver.
(do poema Desfile)


Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
(do poema Rola Mundo)


Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas
(do poema Visão 1944)


E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
(do poema os Últimos Dias)


O que escrevi não conta.
O que desejei é tudo.
(do poema Cidade Prevista)

22 de maio de 2011

Memórias do subsolo

Fiódor Dostoiévski, 1864, Rússia

"Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo". Essa é a declaração que dá início ao romance. São essas as primeiras palavras pronunciadas pelo protagonista da obra, um personagem que não informa seu nome, mas revela os seus pensamentos mais subterrâneos, seus segredos mais humanos.

"Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente."

O livro, considerado uma das primeiras obras existencialistas, é divido em duas partes. Uma primeira, talvez o segmento mais denso das memórias, no qual o personagem apresenta aquilo que podemos chamar de sua filosofia, ou seja, sua ética, suas convicções e suas verdades intelectuais. E a segunda, onde leitor vai encontrar o relato de episódios marcantes da vida desse anti-herói dostoievskiano, acontecimentos que revelam as relações desse homem do subsolo com a sociedade, suas frustrações e angústias. A narrativa é desenvolvida com o recurso do fluxo da consciência, transmitindo algo próximo ao ponto de vista do pensamento do personagem; uma linguagem que mistura fatos, sentimentos e ideias para representar o instante.

Essas são as memórias de um homem atormentado por uma sensibilidade extrema, estimulado por uma inteligência incompreendida e esmagado por uma consciência hipertrofiada. Ou assim pensa ele próprio: "Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, um doença autêntica, completa" (p.18).

"Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados. Já aludi a isto há pouco. Repito, e repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são atrativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as suas causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; e isto é o fato mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranqüilo e não conservar quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranqüilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apóie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar" (p.29-30).

E onde pode chegar aquele que é dotado de consciência, portador dessa doença paralisante? Na opinião do homem do subsolo, a lugar nenhum: "Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom, nem canalha, nem honrado, nem herói, nem inseto" (p.17).

Mas a maior graça ou a pior miséria é que apesar de toda angústia, esse homem prefere a consciência, origem de sua dor, à alienação. A relação com a realidade talvez seja a maior contradição da mente: se ilumina o pensamento, um tecido de trevas decora o espírito; se se vê luz e felicidade do lado de fora, algo deve estar nublado no interior do intelecto. Dois são os caminhos, mas será que existe uma escolha?

"Embora tenha afirmado, no início, que a consciência, a meu ver, é a maior infelicidade para o homem, sei que ele a ama e não a trocará por nenhuma outra satisfação. A consciência, por exemplo, está infinitamente acima do “dois e dois são quatro”. Depois do “dois e dois”, certamente, nada mais restará, não só para fazer, mas também para conhecer. Tudo o que será possível, então, será unicamente calar os cinco sentidos e imergir na contemplação. Bem, com a consciência obtém-se o mesmo resultado, isto é, também não haverá nada a fazer" (p.48).

"O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo" (p.50).

Esse é o homem do subsolo: Um homem, representação extremada dos paradoxos da mente; o subsolo, metáfora do inconsciente, underground indomável de onde brotam prazeres e tormentos, espaço onde a solidão olha no espelho e reconhece a si mesma.