31 de maio de 2013

Ideias que mudaram o mundo


Felipe Fernandez-Armesto, 2003, Inglaterra

Em busca de desvendar como a história acontece, Felipe Fernandez-Armesto faz um movimento interessante. Ele orienta seu olhar para dentro da mente humana, para aquilo que chamou de "a história dirigida pelas ideias". Em sua opinião, as ideias configuram a principal força responsável pelas mudanças na trajetória da humanidade. "Ao que se sabe, nossa capacidade de pensar é complexa se comparada às das outras espécies. As novas ideias desestabilizam, chegam a ser perigosas. Geram frustração com o modo de ser das coisas ou sugerem possibilidades de elas virem a ser diferentes. Por certo, a imaginação não é uma faculdade exclusivamente humana, mas tudo indica que a riqueza dessa imaginação é inigualável. Cada fato que imaginamos é um novo futuro potencial. Estou convencido de que a maior parte das mudanças históricas tem origem intelectual e de que as ideias são agentes transformadores poderosos", afirma o autor logo na introdução de sua obra.

A proposta de Fernandez-Armesto é identificar as principais ideias de todos os tempos, demarcá-las temporalmente e desenvolver uma breve análise sobre cada uma delas, incluindo o contexto de seu surgimento e os impactos que provocaram e continuam a provocar. Nesse trabalho, ele faz uma descoberta interessante: "a maioria das ideias hoje importantes tem origem antiquíssima. Muitas surgiram na mente das pessoas antes mesmo da invenção da escrita, e só podem ser escavadas arqueologicamente ou reconcebidas a partir das raras obras de arte remanescentes".

Você sabia que canibalismo pode não ter a ver com fome e sim com um solene ato ritual? Já pensou porque surgiu a ideia da proibição do incesto, uma das mais fortes de todas? Por que inventamos a noção de tempo começamos a medi-lo? Quando e por quais razões decidimos que a hereditariedade seria o canal de transmissão de transmissão do poder, da riqueza e status? Essas são apenas algumas das questões intrigantes feitas pelo autor.

Quem tem curiosidade aguçada e prazer pela descoberta encontrará na obra uma grande fonte de prazer. São 178 ideias (se eu não tiver contado errado) divididas em 400 páginas de um texto leve e saboroso. E para quem acha que duas páginas não são suficientes para tratar de questões como morte, tempo, caos e incerteza, Fernandez-Armesto oferece uma bibliografia básica de respeito sobre cada assunto, presenteando o leitor com um valioso hipertexto sobra a história do nosso conhecimento.

Mais do que uma seleção arbitrária sobre as principais ideias da humanidade, mais do que estar certo ou errado em seu olhar sobre cada uma delas, o livro é um um convite quase irrecusável para o o aprendizado e a reflexão sobre quem somos e o que pensamos.

A seguir, transcrevo poucos dos muitos trechos que reservei destaque durante a leitura. Aperitivos que despertam o paladar do cérebro para refeições cada vez mais elaboradas.

A ideia do canibalismo
"Que motivo animava os primeiros antropófagos, centenas de anos antes do Homo sapiens? Seria ocioso especular, mas podemos supor que não era um mero expediente de sobrevivência ou um ato de fome ou glutonaria, e sim um solene ato ritual, fundamentado em uma ideia: a tentativa de obter um efeito imaginado e incomensurável" (p.12-13).

A ideia de controlar a natureza através da magia
"A ideia é uma das mais poderosas que o mundo já conheceu: recorrente em todas as sociedades, nenhuma decepção é capaz de eliminá-la. A maioria dos testes constata que ela é falha; nunca se propôs um método convincente de sistematizar a magia. No entanto, por mais que falhassem, os magos sempre inspiraram temor e esperança e sempre mereceram reverência e recompensa" (p.24).

A ideia de uma moralidade universal
"[...] a crença em um ethos ou padrão de pensamento universal, graças ao qual se pode distinguir o bem do mal como uma questão de princípio, é tão comum na humanidade que deve ser antiquíssima. [...] O mais provável é que ela seja como todos os grande objetivos: conquanto raramente alcançados, levam ao empenho, à disciplina e ao autoaprimoramento. Faz com que as sociedades que a tomam a sério sejam queridas pelos cidadãos e fortalecidas pela lealdade e o espírito de sacrifício. A noção romântica de 'justiça poética' - o bem é mais forte que o mal - pode ser um exagero, mas não deixa de ter certa plausibilidade" (p.49).

A ideia de comércio
"Ele nada tinha a ver com as necessidades materiais; tampouco foi, como pretendiam os economistas, o resultado de um sistema racional de escoamento da produção excedente. Ao que tudo indica, o comércio primitivo se realizava principalmente com propósitos rituais. 'A grande descoberta da pesquisa histórica e antropológica recente', escreveu em 1944 Karl Polanyi, um dos mais sofisticados críticos modernos do capitalismo, 'é a de que, via de regra, a economia humana se submerge nas relações sociais. O homem não age para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais: age para salvaguardar sua posição social, suas prerrogativas sociais, seus ativos sociais. Só valoriza os bens materiais à medida que eles servem a esse fim'" (p.56).

A ideia de que todos os homens são iguais
"Por ter se originado no mito, a ideia de igualdade sempre foi tratada como tal: glorificada por muitos, levada a sério por poucos. Ocasionalmente acreditou-se nela e, em quase todos os casos, isso resultou em rebeliões dos desprivilegiados contra a ordem estabelecida (fosse ela qual fosse). Quando bem-sucedidas, as rebeliões são revoluções: mas, posto que a igualdade tenha sido um objetivo comum às revoluções, nunca perdurou como realização revolucionária" (p.91).

23 de abril de 2013

A física do futuro (não-ficção)


Michio Kaku, 2011, EUA

Em "A física do futuro", Michio Kaku utiliza seu conhecimento em física, tecnologia e também seu contato com as mais recentes pesquisas científicas para elaborar uma visão sobre o futuro de nossa civilização. Vamos viver mais? Por quanto tempo? Qual será nossa matriz energética? Como será nossa relação com as máquinas? Como será nossa relação uns com outros? Essas são algumas das perguntas em foco neste relato interessante sobre as possibilidades e caminhos que a ciência abre para os próximos 100 anos (e mais).

Desafio
Michio Kaku reconhece a dificuldade de exercícios que se prestam a imaginar do futuro, mas assume o risco, pois avalia que a compreensão madura das leis da natureza são um instrumento poderoso para sondagem das relações de causa e efeito no universo:

"Hoje já não vivemos na era das trevas da ciência, quando se pensava que trovões e pragas eram obras dos deuses. Temos uma grande vantagem que Verne e Leonardo da Vinci não tiveram: uma sólida compreensão das leis da natureza.
Previsões serão sempre falhas, mas um jeito de fazê-las confiáveis ao máximo é compreender as quatro forças fundamentais da natureza que movem todo o universo. Sempre que uma delas foi compreendida e descrita, isso mudou a história humana" (p.24).

Princípio do Homem das Cavernas
Um aspecto bastante interessante e que funciona como referência central para as avaliações do autor é o que ele chama de "Princípio do Homem das Cavernas". Para aqueles que acham que a tecnologia afasta as pessoas e vai acabar levando os indivíduos à insensibilidade e ao isolamento, Michio Kaku afirma exatamente o contrário. Segundo ele, a tecnologia da TV não acabou com o teatro, as compras online não tiraram as pessoas das ruas, a internet não acabou com o cinema, a telefonia não eliminou as reuniões presenciais... Tudo isso, afirma, porque ainda somos os mesmos humanos modernos que surgiram na África há mais de 100 mil anos. Não há evidências que nossos cérebros, personalidade, desejos e sonhos tenham mudado de lá pra cá.

"A questão é: havendo um conflito entre a tecnologia moderna e os desejos de nossos ancestrais primitivos, esses desejos primitivos vencem sempre. É o Princípio do Homem das Cavernas. [...] nossos ancestrais sempre gostaram de encontros pessoais. Isso nos ajudava a criar vínculos com os outros e a ler suas emoções ocultas. É por isso que a cidade sem pessoas jamais aconteceu. [...] Esta é a razão pela qual o turismo cibernético nunca decolou.
[...] nossos antigos ancestrais sempre queriam ver algo por eles mesmos e não confiavam no que os outros diziam. Era crucial para nossa sobrevivência na floresta confiar em evidências físicas reais e não em rumores. [...]
Portanto, existe uma contínua competição entre High Tech e High Touch, quer dizer, entre ficar sentado numa cadeira assistindo a TV e estender a mão e tocar as coisas a nossa volta.
[...] esse é o Princípio do Homem das Cavernas: preferimos ter as duas coisas, mas, podendo escolher, ficamos com High Touch, como nossos ancestrais das cavernas" (p. 29-30-31).

Futuro
O autor organiza sua obra segmentando as previsões por tema -- computador, inteligência artificial, medicina, nanotecnologia, energia, viagens espaciais, riqueza e humanidade -- e analisando cada tema em três momentos -- num futuro próximo (até 2030), em meados do século (2030 a 2070) e num futuro longínquo (de 2070 a 2100).

As projeções de Michio Kaku, de máquinas fantásticas a processos que hoje nos soariam como mágicos, estão bem respaldas na ciência contemporânea e, por mais que o leitor não seja um especialista no assunto, não há como negar que a argumentação do autor as faz parecer bem verossímeis. Entretanto, a obra parece ter um caráter excessivamente otimista em relação à ciência, à tecnologia e ao capitalismo, sugerindo que o conhecimento humano vai, naturalmente, superar nosso momento de escassez e alcançar uma era de abundância e criatividade. Certo ou errado, o livro oferece uma leitura bem instigante, um retrato rico da ciência contemporânea e insights valiosos para a compreensão da nossa sociedade, nossa economia e nossa individualidade.

Reflexão
De acordo com Kaku, para que a humanidade aproveite todo o seu potencial, ela precisará, mais do que ciência, de sabedoria. Ele cita Kant para afirmar que se a ciência é conhecimento organizado, a sabedoria seria a vida organizada. Aí está a reflexão final dessa interessante especulação sobre o futuro; um texto que olha pra frente, mas que certamente revela muitas coisas importantes sobre o nosso mundo de agora.

"A chave, portanto, é encontrar a sabedoria necessária para empunhar esta espada da ciência. [...] Na minha opinião, sabedoria é a capacidade de identificar as questões cruciais do nosso tempo, analisá-las de diferentes pontos de vista e perspectivas e depois escolher a que cumpre algum nobre objetivo e princípio.
Na nossa sociedade, é difícil encontrar sabedoria. Como disse Isaac Asimov, 'O aspecto mais triste da sociedade neste momento é que a ciência acumula conhecimento mais rápido do que a sociedade acumula sabedoria'. Ao contrário da informação, ela não pode ser distribuída via blogs e conversas pela internet. Como estamos nos afogando num oceano de informações, o artigo mais precioso na sociedade moderna é a sabedoria. Sem sabedoria e perspicácia, vagamos ao léu e sem propósito, com uma sensação de vazio depois que acaba a novidade das ilimitadas informações" (p.386-387).

13 de dezembro de 2012

Manicômios, Prisões e Conventos (não-ficção)


Erving Goffman, 1961, Canadá

"As características das instituições totais" é o primeiro dos três ensaios contidos na obra. Nele, Goffman examina a vida dentro dos estabelecimentos que se enquandram no conceito de instituição total, aqueles que podem ser definidos "como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (p.11). Manicômios, prisões e conventos são os exemplos mais comuns deles, tanto que dão nome ao livro editado pela Editora Perspectiva.

Como se dá a sociabilidade nesses ambientes? Existem características comuns a estes espaços? Quais são as principais forças que condicionam internos e empregados? Como reagem os indivíduos? Essas são algumas questões consideradas pelo autor.

Goffman introduz seu ensaio pontuando que as instituições, das mais abertas às mais restritas, sempre apresentam uma tendência de fechamento, já que funcionam como espaços de construção de sentidos e delimitação do mundo. No extremo desse fechamento estariam as instituições totais.

"Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências de 'fechamento'. Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são muito mais 'fechadas' que outras. Seu fechamento ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas, pântanos" (p.16).

Mas por que estudar essas instituições? Qual a origem e o objetivo desses estabelecimentos? Para Goffman, o fato básico das instituições totais é o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas. "Os objetivos confessados nas instituições totais não são muito numerosos: realização de algum objetivo econômico; educação e instrução; tratamento médico ou psiquiátrico; purificação religiosa; proteção da comunidade mais ampla; e, segundo sugestão de um estudioso das prisões, incapacitação, retribuição, intimidação e reforma", indica o autor. Segundo ele, a instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal. "São estufas para mudar pessoas; cada um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao 'eu'", acrescenta.

Essa é a grande questão da obra. Por se configurarem como laboratórios de manipulação do 'eu', as instituições totais levam ao limite a coerção que exercem sobre os indivíduos e acabam produzindo efeitos extremos de condicionamento e mortificação do eu (supressão da concepção de si mesmo e da cultura pessoal). Além de se configurar como um estudo valioso, que serve de argumento para a extinção de estabelecimentos ineficientes e desumanos, ou mesmo para a reforma de outros que alguns defendem como necessários, o ensaio oferece interessantes pistas para o entendimento e interpretação das instituições ditas comuns e sua influência nas comunidades humanas.

A seguir, destaco mais alguns trechos marcantes do estudo.

Descrição das instituições totais
"As instituições totais de nossa sociedade podem ser, grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos. Em primeiro lugar, instituições criadas para cuidar das pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes. Emsegundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidarde si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro tipode instituição total é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões (do ponto de vistados que vivem nas moradias dos empregados). Finalmente, há os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre exemplos de tais instituições, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e outros claustros" (p.16-17).

A mortificação do eu
"O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele.
Os processos pelos quais o eu da pessoa é mortificado são relativamente padronizados nas instituições totais; a análise desse processo pode nos auxiliar a ver as disposições que os estabelecimentos comuns devem garantir, a fim de que seus membros possam preservar seu eu civil.
A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu. Na vida civil, a sequencia de horários dos papéis do indivíduo, tanto no ciclo vital quanto nas repetidas rotinas diárias, assegura que um papel que desempenhe não impeça sua realização e suas ligações em outro. Nas instituições totais, ao contrário, a participação automaticamente perturba a sequencia de papéis, pois a separação entre o internado e o mundo mais amplo dura o tempo todo e pode continuar por vários anos. Por isso ocorre o despojamento do papel. Em muitas instituições totais, inicialmente se proíbem as visitas vindas de fora e as saídas do estabelecimento, o que assegura uma ruptura inicial profunda com os papéis anteriores e uma avaliação da perda de papel" (p.24).

"O processo de admissão pode ser caracterizado como uma despedida e um começo, e o ponto médio do processo pode ser marcado pela nudez. Evidentemente, o fato de sair exige uma perda de propriedade, o que é importante porque as pessoas atribuem sentimentos do eu àquilo que possuem. Talvez a mais significativa dessas posses não seja física, pois é nosso nome; qualquer que seja a maneira de ser chamado, a perda de nosso nome é uma grande mutilação do eu" (p.27).

"Depois da admissão, a imagem que apresenta de si mesmo é atacada de outra forma. No idioma expressivo de determinada sociedade civil, alguns movimentos, algumas posturas e poses traduzem imagens inferiores do indivíduo e são evitadas como aviltantes. Qualquer regulamento, ordem ou tarefa, que obrigue o indivíduo a adotar tais movimentos ou posturas, pode mortificar seu eu. Nas instituições totais, são muito numerosas tais 'indignidades' físicas. Por exemplo, nos hospitais para doentes mentais os pacientes podem ser obrigados a comer com colher. Nas prisões militares, os internados podem ser obrigados a ficar em posição de sentido sempre que um oficial entre no local" (p.30).

"Qualquer que seja a forma ou a fonte dessas diferentes indignidades, o indivíduo precisa participar de atividade cujas consequências simbólicas são incompatíveis com sua concepção do eu. Um exemplo mais difuso desse tipo de mortificação ocorre quando é obrigado a executar uma rotina diária de vida que considera estranha a ele — aceitar um papel com o qual não se identifica" (p.31).

"Nas instituições totais há outra forma de mortificação; a partir da admissão, ocorre uma espécie de exposição contaminadora. No mundo externo, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos do eu — por exemplo, seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens — fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e as encarnações do eu são profanadas" (p.31).

"[...] tudo isso dá uma indicação terrível da autoridade onipotente sob a qual está vivendo" (p.39).

"No entanto, nas instituições totais dos três tipos, as várias justificativas para a mortificação do eu são muito frequentemente simples racionalizações, criadas por esforços para controlar a vida diária de grande número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos. Além disso, as mutilações do eu ocorrem nos três tipos, mesmo quando o internado está cooperando e a direção tem interesses ideais pelo seu bem-estar" (p.48).

"A mortificação ou mutilação do eu tendem a incluir aguda tensão psicológica para o indivíduo, mas para um indivíduo desiludido do mundo ou com sentimento de culpa, a mortificação pode provocar alívio psicológico" (p.49).

Antissociabilidade
"Nas instituições totais, geralmente há necessidade de esforço persistente e consciente para não enfrentar problemas. A fim de evitar possíveis incidentes, o internado pode renunciar a certos níveis de sociabilidade com seus companheiros" (p.45).

Infantilização
"Em primeiro lugar, as instituições totais perturbam ou profanam exatamente as ações que na sociedade civil têm o papel de atestar, ao ator e aos que estão em sua presença, que tem certa autonomia no seu mundo — que é uma pessoa com decisões 'adultas', autonomia e liberdade de ação. A impossibilidade de manter esse tipo de competência executiva adulta, ou, pelo menos, os seus símbolos, pode provocar no internado o horror de sentir-se radicalmente rebaixado no sistema de graduação de idade" (p.46).

Ineficiência
"Toda instituição total pode ser vista como uma espécie de mar morto, em que aparecem pequenas ilhas de atividades vivas e atraentes. Essa atividade pode ajudar o indivíduo a suportar a tensão psicológica usualmente criada pelos ataques ao eu. No entanto, precisamente na insuficiência de tais atividades, podemos encontrar um importante efeito de privação das instituições totais. Na sociedade civil, um indivíduo que fracassa num de seus papéis sociais geralmente tem oportunidade para esconder-se em algum local protegido onde pode aceitar a fantasia comercializada — cinema, TV, rádio, leitura — ou empregar 'consolos', como o cigarro ou a bebida: Nas instituições totais, principalmente logo depois da admissão, tais materiais podem não estar ao seu alcance. No momento em que tais pontos de repouso são mais necessários, podem ser mais difíceis" (p.66).

7 de setembro de 2012

Teorema


Pier Paolo Pasolini, 1968, Itália

Uma família, aparentemente acostumada a sua rotina de papéis bem estabelecidos, recebe a visita de um estranho. Esse misterioso hóspede, do qual não sabemos a origem e mesmo o nome, possui um charme e carisma que desloca completamente o centro de gravidade da casa, conquistando cada um dos moradores e transformando para sempre a vida deles. A família nunca mais será a mesma.

O estranho tem uma postura impassível e serena, e parece possuir uma empatia incrível, sendo capaz de entender e compreender a dor de cada um dos personagens. Essa postura de intimidade quase paternal aliada a uma beleza que emana juventude e vigor são os elementos principais do poder de atração que o hóspede exerce sobre os membros da família. "Uma presença que não tem nenhum significado e que, no entanto, é uma revelação", escreve Pasolini.

Um a um, da empregada ao pai, passando pelos filhos e pela matrona da casa, todos são seduzidos por essa luz irresistível, por esse desconcerto apaixonante que faz despertar dimensões ocultas e reprimidas do desejo. Esse contato com a luz não é impune para nenhum dos personagens. A experiência desloca a existência de sua condição anestesiada e confortável, trazendo à superfície de cada morador uma individualidade e consciência de si que alcançam contornos dolorosos e enlouquecedores. É o colapso daquela família.

"Alguma coisa difícil de definir, uma insuportável lucidez, o faz permanecer de olhos abertos, pensando, quem sabe, numa vida cujo sentido, depois de ter sido distorcido, ficou no ar, em suspenso. Que fazer dela?" (p.66).

O livro expressa o olhar de Pasolini sobre a denominada “crise estrutural do capital” a partir de uma de suas principais instâncias sócio-reprodutivas: a família. 

"Para poder exercitar, realmente ou realisticamente, a inteligência, ele deveria ser inteiramente recriado. Sua classe social vive nele a sua verdadeira vida. Não será, pois, compreendendo ou aceitando, e sim agindo, que ele poderá apoderar-se da realidade que lhe é sonegada por sua razão burguesa; só agindo, como num sonho; ou melhor, agindo antes de decidir" (p. 43).

O misterioso hóspede não é a causa do colapso familiar. O que o autor denuncia como origem desse processo é o próprio sistema capitalista, que reduz as individualidades a papéis padronizados, vazios e inertes; que condiciona as mentes para relações de consumo; e empobrece a riqueza da interação humana, pois impõe a mercadoria como referência de valor.

A família de “Teorema” já encontrava-se em crise antes da quebra da rotina. Seus laços já vinham deteriorados e enfraquecidos. A manutenção destes devia-se apenas a um conjunto de crenças equivocadas e à inércia típica dos anestesiados. Quando o estranhamento é colocado, com a chegada do hóspede, todo esse sistema precário desmorona e, com ele, os sentidos que davam sentido à antiga vida.

O título “Teorema” traduz a ideia de Pasolini de, a partir de uma situação particular, tentar denunciar uma condição que, para ele, é universalmente imposta pelo sistema capitalista: uma condição que implica na geração de individualidades frustradas, para que estas compensem seus vazios existenciais nas prateleiras da sociedade de consumo. Escrita e rodada em 1968 (Pasolini também dirigiu um filme com esse texto), a obra possui um destacado poder visionário que nos ajuda a entender um pouco da dinâmica neoliberal de nossa época.

14 de junho de 2011

A rosa do povo

Carlos Drummond de Andrade, 1945, Brasil

Considerado um dos livros mais importantes do poeta itabirano, "A rosa do povo" foi escrito entre os anos de 1943 e 1945, em plena Segunda Guerra Mundial.

Mas o que posso dizer de especial sobre a obra? Talvez o melhor seja não afirmar nada. Racionalizar pra quê, quando o melhor é sentir? Não me arriscarei em análises, interpretações e referências - a mim falta o conhecimento do especialista. Melhor é fruir a dor e a beleza de versos tão poderosos e universais.

Fiquemos com os versos então; alguns que selecionei pelo particular e anti-científico método do espanto, do estranhamento e da admiração.


Sou um homem livre
mas levo uma coisa.

Não sei o que seja.
Eu não a escolhi.
Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.

Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.
(do poema Carrego Comigo)


As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se
na pedra
(do poema Nosso Tempo)


pois a hora mais bela
surge da mais triste
(do poema Uma Hora e Mais Outra)


O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
(do poema Passagem de Ano)


Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
(do poema Passagem da Noite)


Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
(do poema Ontem)


Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver.
(do poema Desfile)


Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
(do poema Rola Mundo)


Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas
(do poema Visão 1944)


E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
(do poema os Últimos Dias)


O que escrevi não conta.
O que desejei é tudo.
(do poema Cidade Prevista)

22 de maio de 2011

Memórias do subsolo

Fiódor Dostoiévski, 1864, Rússia

"Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo". Essa é a declaração que dá início ao romance. São essas as primeiras palavras pronunciadas pelo protagonista da obra, um personagem que não informa seu nome, mas revela os seus pensamentos mais subterrâneos, seus segredos mais humanos.

"Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente."

O livro, considerado uma das primeiras obras existencialistas, é divido em duas partes. Uma primeira, talvez o segmento mais denso das memórias, no qual o personagem apresenta aquilo que podemos chamar de sua filosofia, ou seja, sua ética, suas convicções e suas verdades intelectuais. E a segunda, onde leitor vai encontrar o relato de episódios marcantes da vida desse anti-herói dostoievskiano, acontecimentos que revelam as relações desse homem do subsolo com a sociedade, suas frustrações e angústias. A narrativa é desenvolvida com o recurso do fluxo da consciência, transmitindo algo próximo ao ponto de vista do pensamento do personagem; uma linguagem que mistura fatos, sentimentos e ideias para representar o instante.

Essas são as memórias de um homem atormentado por uma sensibilidade extrema, estimulado por uma inteligência incompreendida e esmagado por uma consciência hipertrofiada. Ou assim pensa ele próprio: "Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, um doença autêntica, completa" (p.18).

"Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados. Já aludi a isto há pouco. Repito, e repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são atrativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as suas causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; e isto é o fato mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranqüilo e não conservar quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranqüilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apóie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar" (p.29-30).

E onde pode chegar aquele que é dotado de consciência, portador dessa doença paralisante? Na opinião do homem do subsolo, a lugar nenhum: "Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom, nem canalha, nem honrado, nem herói, nem inseto" (p.17).

Mas a maior graça ou a pior miséria é que apesar de toda angústia, esse homem prefere a consciência, origem de sua dor, à alienação. A relação com a realidade talvez seja a maior contradição da mente: se ilumina o pensamento, um tecido de trevas decora o espírito; se se vê luz e felicidade do lado de fora, algo deve estar nublado no interior do intelecto. Dois são os caminhos, mas será que existe uma escolha?

"Embora tenha afirmado, no início, que a consciência, a meu ver, é a maior infelicidade para o homem, sei que ele a ama e não a trocará por nenhuma outra satisfação. A consciência, por exemplo, está infinitamente acima do “dois e dois são quatro”. Depois do “dois e dois”, certamente, nada mais restará, não só para fazer, mas também para conhecer. Tudo o que será possível, então, será unicamente calar os cinco sentidos e imergir na contemplação. Bem, com a consciência obtém-se o mesmo resultado, isto é, também não haverá nada a fazer" (p.48).

"O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo" (p.50).

Esse é o homem do subsolo: Um homem, representação extremada dos paradoxos da mente; o subsolo, metáfora do inconsciente, underground indomável de onde brotam prazeres e tormentos, espaço onde a solidão olha no espelho e reconhece a si mesma.

21 de julho de 2010

Freakonomics (não-ficção)

Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner, 2005, EUA

Qual é o tema central de Freakonomics? Nem os próprios autores souberam responder a essa pergunta. Para eles, o fio condutor da obra é o “raciocínio lógico sobre o comportamento humano no mundo real”: essa seria, segundo Levitt e Dubner, a síntese do pensamento estilo Freakonomics.

As perguntas propostas são variadas e curiosas, como “por que os traficantes ainda continuam morando com suas mães?”, ou “em que a Ku Klux Klan se parece com um grupo de corretores de imóveis?”. O método adotado é a análise de extensos bancos de dados e a utilização de ferramentas da economia para se chegar às respostas.

Mas não soa estranho o advento de uma abordagem econométrica para o estudo do comportamento humano, algo tão diverso e imprevisível? Como fazer sociologia com ferramentas matemáticas e estatísticas? Para os autores, isso não seria problema, pois “Como a ciência da Economia é, em princípio, um conjunto de ferramentas e não uma matéria em si, nenhum tema, por mais alheio que lhe pareça, deve ser considerado fora do seu alcance” (p.14).

Estranho e polêmico. A reação ao pensamento Freakonomics foi forte, principalmente à tese de que uma das principais causas da redução da criminalidade nos EUA foi a legalização do aborto. Nas palavras deles:

“[...] o efeito mais dramático da legalização do aborto — e que levaria anos para se fazer sentir — talvez tenha sido o seu impacto sobre a criminalidade. No início dos anos 90, precisamente quando a primeira leva de crianças nascidas após o caso Roe x Wade chegava à adolescência — época em que os jovens do sexo masculino atingem seu auge criminoso —, o índice de criminalidade começou a cair. O que faltava nessa leva, é claro, eram as crianças mais propensas a se tornarem criminosas. A criminalidade continuou a cair à medida que uma geração inteira alcançou a maioridade, dela excluídas as crianças cujas mães não haviam querido pô-las no mundo. O aborto legalizado resultou num número menor de filhos indesejados; filhos indesejados levam a altos índices de criminalidade. A legalização do aborto, assim, levou a menos crimes.” (p.129-130).

Ciência ou sofisma? A pergunta está no ar e o debate está aberto.

Levitt e Dubner se antecipam a possíveis críticas de que a tese acima seria uma construção leviana, um argumento pró-aborto. Para eles, os dados apenas apontam para uma correlação esclarecedora, o que não significa necessariamente a justificação de um meio, o aborto, para a obtenção de uma finalidade, a redução da criminalidade. Como eles próprios costumam repetir em toda a obra: “[...] o cerne da questão é que o raciocínio estilo Freakonomics simplesmente não tem nada a ver com moralidade. Como sugerimos no início deste livro, se a moralidade representa um mundo ideal, a economia representa o mundo real” (p.196).

“Não é preciso dizer que é chocante descobrir que o aborto foi um dos maiores fatores responsáveis pela diminuição da criminalidade da história americana. A sensação é menos darwiniana do que swiftiana, trazendo à lembrança uma velha observação ferina atribuída a G. K. Chesterton: quando inexistem chapéus suficientes para todos, a solução do problema não é cortar algumas cabeças. A queda da criminalidade foi, no jargão dos economistas, "um beneficio acidental" da legalização do aborto. Não é preciso, porém, ser contra o aborto, do ponto de vista moral ou religioso, para perder o prumo diante da noção de que um sofrimento pessoal possa ser convertido em satisfação coletiva.” (p.132)

A seguir, transcrevo alguns trechos de Freakonomics, passagens que ilustram os fundamentos da obra, análises curiosas, opiniões e informações interessantes. Nunca é demais sugerir que se mantenha o senso crítico sempre alerta, para não se adotar automaticamente as respostas oferecidas pelo livro. Se há uma lição inquestionável em Freakonomics, é a de que deve-se sempre questionar a sabedoria convencional, o senso comum, o conhecimento estabelecido, e isso vale também para as “verdades” produzidas por Levitt e Dubner. Afinal, o que conta no processo de construção do conhecimento é o processo, a constante busca de um melhor entendimento das coisas.

Ideias fundamentais de Freakonomics
“Os incentivos são a pedra de toque da vida moderna. Entendê-los – ou, na maior parte das vezes, investigá-los – é a chave para solucionar praticamente qualquer enigma, dos crimes violentos à trapaça nos esportes ou ao namoro na Internet.

O senso comum em geral está equivocado. Não havia escalada da criminalidade nos anos 90, o dinheiro sozinho não ganha eleições e – surpresa! – ninguém jamais comprovou que ingerir oito copos d’água por dia faça bem à saúde. O senso comum costuma ser mal fundamentado e muitíssimo difícil de investigar, mas isso não é impossível.

Causas distantes e até mesmo sutis podem, muitas vezes, provocar efeitos drásticos. A solução de um determinado enigma nem sempre está diante dos nossos olhos. Norma McCorvey teve um impacto bem maior sobre a criminalidade do que a combinação de forças do controle de armas, da euforia econômica e das estratégias policiais inovadoras. É possível dizer o mesmo, como veremos adiante, de um homem chamado Oscar Danilo Blandon, também conhecido como Johnny Rei do Crack.

Os "especialistas" – dos criminologistas aos corretores de imóveis – usam suas informações privilegiadas em benefício próprio. No entanto, eles podem ser vencidos em seu próprio jogo. Além disso, com o advento da Internet, sua superioridade em termos de informação cada dia encolhe mais – como comprova, entre outras coisas, a queda de preço dos caixões e dos seguros de vida.

Saber o que medir e como medir faz o mundo parecer muito menos complicado. Quando se aprende a examinar os dados de forma correta, é possível explicar enigmas que do contrário pareceriam insolúveis, pois nada como o poder dos números para remover camadas e camadas de desconhecimento e contradições” (p.13-14).

Economia e incentivos
“A economia é, em essência, o estudo dos incentivos: como as pessoas conseguem o que querem, ou aquilo de que precisam, principalmente quando outras pessoas querem a mesma coisa ou dela precisam. Os economistas adoram incentivos. Adoram bolá-los e pô-los em prática, estudá-los e brincar com eles. O economista-padrão acredita que o mundo ainda não inventou um problema cuja solução ele não possa inventar, desde que lhe seja dada carta branca para elaborar o esquema de incentivo apropriado. Essa solução nem sempre é bonita - ela pode incluir coação ou multas exorbitantes, bem como a violação das liberdades civis -, mas o problema original com certeza será resolvido. Um incentivo é uma bala, uma alavanca, uma chave: geralmente um objeto pequeno com incrível poder de alterar uma situação.

Aprendemos a reagir a incentivos, negativos e positivos, desde o início da vida. Se você engatinhar até o forno quente e encostar a mão nele, vai queimar o dedo, mas se trouxer apenas notas 10 da escola, o prêmio é uma bicicleta nova. Se for flagrado com o dedo no nariz durante a aula, você vira piada, mas se vencer campeonatos para o time de basquete, passa a ser o líder da turma. Se chegar em casa depois da hora, o castigo é certo, mas se tirar boas notas no colégio, carimba o passaporte para uma boa universidade. Se levar bomba no curso de direito, vai precisar trabalhar na seguradora do papai, mas caso se destaque a ponto de uma empresa concorrente disputar seu passe, ganha a vice-presidência, não precisando mais trabalhar para o papai. Se a euforia do novo cargo o levar a exceder o limite de velocidade na volta para casa, fará jus a uma multa de $100, mas se no final do ano atingir sua meta de vendas, embolsando uma gratificação polpuda, não só os $100 da multa se transformam em mixaria, como você vai poder comprar aquele fogão estupendo no qual seu filho, na fase de engatinhar, poderá queimar o próprio dedinho.

Incentivos não passam de meios para estimular as pessoas a fazer mais coisas boas e menos coisas ruins” (p.18).
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“A noção fundamental da economia: todo mundo reage a incentivos” (p.275).
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“Os incentivos existem em três tipos de sabores básicos: econômico, social e moral” (p.19).
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“Se a economia é uma ciência preocupada basicamente com incentivos, ela é também – felizmente – uma ciência com ferramentas estatísticas para avaliar como as pessoas reagem a esses incentivos. Bastam apenas alguns dados” (p.26).

Quem trapaceia?
“Ora, praticamente todo mundo, se a oportunidade for propícia. Você pode dizer a si mesmo: "Eu não, seja qual for a situação." Depois, talvez se lembre de quando trapaceou, digamos, no jogo de damas. Na semana passada. Ou daquela bola de golfe que empurrou com o pé para tirar da má posição em que o arremesso a deixara. Ou da vez em que estava aguando a broa na sala do café do escritório, mas não tinha o dinheiro para pôr na caixinha coletiva. E pegou a broa assim mesmo, jurando que pagaria dobrado na vez seguinte. O que acabou nunca fazendo.

Para cada pessoa inteligente que se dê ao trabalho de bolar um esquema de incentivo existe um exército de outras, inteligentes ou não, que inevitavelmente gastarão mais tempo ainda tentando fraudá-lo. […] A trapaça é, primordialmente, um ato econômico: obter mais gastando menos” (p.22-23).

Honestidade inata?
Adam Smith, contudo, não ficaria surpreso. Com efeito, o tema de seu primeiro livro, A teoria dos sentimentos morais, era a honestidade inata do ser humano. "Por mais que se considere egoísta um indivíduo", escreveu ele, "existem evidentemente alguns princípios
em sua natureza, que o fazem interessar-se pela sorte dos outros, tomando necessária para ele a felicidade desses outros, embora daí não lhe advenha coisa alguma além do prazer de testemunhá-la."

Feldman gosta de contar a seus amigos economistas uma história chamada "O anel de Gyges". Ela faz parte de A República de Platão. Um aluno, Glauco, apresentou-a em resposta a uma aula de Sócrates – que, como Adam Smith, argumentava que as pessoas em geral são boas mesmo sem correr o risco de punição se não o forem. Glauco, à semelhança dos amigos economistas de Feldman, discordava dessa visão. O personagem de sua história, um pastor chamado Gyges, encontra por acaso uma caverna onde jaz um cadáver que usava um anel. Quando Gyges enfia o anel no próprio dedo, descobre que esse o torna invisível. Sem ninguém para monitorar seu comportamento, Gyges passa a praticar más ações – seduz a rainha, mata o rei e assim por diante. A história de Glauco levanta uma indagação moral: algum homem seria capaz de resistir à tentação do mal se soubesse que seus atos não seriam testemunhados? Aparentemente, Glauco achava que não, mas Paul Feldman se alinha com Sócrates e com Adam Smith, pois sabe que a resposta, ao menos 87% [número obtido em um dos estudos descritos no livro] das vezes, é afirmativa (p.48-49).

Qual o valor do senso comum?
“Assim é que, sob o ponto de vista de Galbraith, a sabedoria convencional deve ser simples, conveniente, cômoda e confortadora — embora não necessariamente verdadeira. Seria tolo argumentar que a sabedoria convencional nunca é verdadeira, mas perceber onde ela pode ser falsa — percebendo, quem sabe, os indícios de um raciocínio apressado ou interesseiro — é um bom ponto de partida para elaborar perguntas.“ (p.82).

10 de junho de 2010

A metamorfose

Franz Kafka, 1912, República Tcheca

“A metamorfose” conta a história de Gregor, um caixeiro-viajante que mora com os pais e a irmã. Sua personalidade é simples, suas aspirações são medíocres, sua vida gira em torno do trabalho e do compromisso de levar o sustento para os pais e tentar oferecer um futuro promissor para a irmã, uma musicista em potencial. Toda essa rotina singela e desinteressante, poderíamos dizer mesmo que empobrecida de vigor, se vê abruptamente quebrada por um acontecimento disparatado: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (p.7).

Em Kafka, o que mais espanta não é o absurdo, mas a aparente serenidade e o comportamento blasé dos personagens frente a esse absurdo. Um membro da família amanhece metamorfoseado em um monstro e, superado o choque inicial, as preocupações de Gregor e de seus familiares concentram-se quase que exclusivamente em questões de ordem prática, como se o importante fosse saber como agora o filho vai poder trabalhar, como a família vai se sustentar, como organizar o quarto para melhor proveito do irmão, como esconder essa nova condição de tudo e de todos, o que fazer para a vida seguir com normalidade...

A inesperada mudança é encarada com uma dose desconfortável de tranquilidade :

“E enquanto Gregor expelia tudo às pressas, mal sabendo o que falava, aproximou-se do armário com facilidade – certamente em conseqüência da prática já adquirida na cama – tentando erguer-se apoiado nele. Queria efetivamente abrir a porta, deixar-se ver e conversar com o gerente; estava curioso para saber o que diriam, ao vê-lo, os outros que agora exigiam tanto a sua presença. Se eles se assustassem, então Gregor não tinha mais nenhuma responsabilidade e podia sossegar. Mas se aceitassem tudo tranqüilamente, então ele não tinha motivo para afligir-se e podia, caso se apressasse, estar de fato na estação ferroviária às oito horas” (p.20-21).


Interpretações

O que Kafka pretendia ao criar uma história com um personagem que sofre tão inesperada e impossível transformação?

Alguns vão argumentar que a metamorfose refere-se a adesão, por parte de um indivíduo, a novas ideias e conceitos que não aqueles que transitam no fluxo da mediocridade, algo que o deslocaria dos padrões de seu grupo, de sua sociedade, relegando-o à solidão e ao isolamento. Outros diriam que a transformação ilustra uma deficiência física ou mental que reduz o sujeito a uma condição de incapaz, logo imprestável para o capitalismo e estorvo para a família burguesa. As interpretações não param por aí e podem seguir por inúmeros caminhos tanto mundanos como fantásticos.

Logo, se existe uma resposta à pergunta acima, ela não vai em direção a uma interpretação específica para a bizarra metamorfose, seja de fundo psicológico, moral, histórico ou biológico. O que podemos afirmar, com boa dose de segurança, é que Kafka buscou, no seio da literatura, construir uma metáfora aberta, um signo absorvente à reflexão, capaz de ampliar a nossa percepção sobre imagens e sentidos que escapam à lógica linear e cartesiana a qual estamos acostumados.

Mais do que em outros casos, essa é uma obra que depende muito do leitor, de sua experiência ao percorrer as páginas, da leitura que faz, dos sentimentos que são despertados. “A metamorfose” não oferece nenhuma verdade, ela apenas proporciona asas para que cada um experimente um voo particular e bastante interessante sobre o terreno das incertezas, questionamentos e absurdos que povoam a alma humana.

15 de abril de 2010

Pornopopéia

Reinaldo Moraes, 2008, Brasil

Pornopopéia é uma odisseia pelos atraentes, estranhos e perigosos caminhos da satisfação imediata. Zeca, o protagonista, é um cineasta guiado pelo princípio do prazer; e foda-se a autopreservação. Refém de seus impulsos, vive à caça de pessoas e situações que saciem sua interminável fome de gozo. Em seu cardápio, sexo, comida, poética e estados alterados da mente, servidos isolados ou combinados livremente. E quanto mais de tudo, melhor.

“A alma […] é um organismo arcaico com três órgãos: miolos, estômago e genitália” (p.20), afirma Zeca, exibindo o axioma que fundamenta sua caótica teoria sobre a vida.

Em todo o livro, o escatológico funciona como um marcador dos limites do humano, como uma constante lembrança da finitude da existência e um incentivo para que a vida seja orientada às inúmeras possibilidades orgásticas que oferece. “Toda gente se iguala na morte e na bosta, já deve ter dito algum materialista amargurado. Em outras palavras, o destino dá muitas voltas. O intestino também” (p.365).

Para Zeca, a vida é pra ser vivida, bebida, aspirada, metida e fudida, e, de preferência, “tudo ao mesmo tempo agora” (obrigado Titãs). É se jogar no abismo do gozo, num mergulho em busca do centro do planeta do prazer.

Vísceras sim, pois somos feito delas e por elas. Mas não só, porque através delas também flui a energia do sublime, da poesia, da estética de tudo que pode ser sentido, experimentado. Sobrevivência e transcendência – está aí um binômio que explica muito do nosso frenético personagem (e de todos nós, obviamente). Em suas palavras: “E tudo era poesia, tudo sacanagem, tudo alegria” (p.155).

Pornopopéia é um livro dono de um ritmo vibrante, riquíssimo em significados e recheado com belíssimos neologismos, muita poética e reflexão sobre boa parte daquelas coisas "malucas" que a cabeça humana se dispõe a pensar. Leitura recomendadíssima!

E pra não perder o costume, segue a transcrição de alguns trechos da obra:

Sinapses
“O momento pedia uma cabeça aberta, e todos os buracos da minha estavam escancarados pelo bendito ácido” (p.81).

“O que tá pegando é esse oco na cabeça que sempre me acomete depois duma viagem de ácido. É um oco diferente dessa vez, como uma série de ôcos embutidos um dentro do outro, até o oco nuclear infinitesimal onde se abriga o vazio compacto da alma inexistente” (p.20).

“Nisso que dá passar tanto tempo metido consigo mesmo. O sujeito cogita, cogita, e regurgita metafísica barata” (312).

Identificação
“Adoro essa mulher. Ela é linda, ela é alegre, ela não presta. Nem eu” (p.240).

Vida adulta
“No fim do primeiro ano de casório, porém, o convívio já rolava escada abaixo. Azedumes, resmungos, rancores, ameaças, porradas, diluvianas choradeiras por parte dela, traições de ambas as partes, tédio sem fim, era essa a pauta do nosso casório. Nada de muito original, se for ver. Apenas a experiência partilhada de desencanto e confusão que alguns chamam de vida adulta” (p.433).

Palavras
“Então, vamo vê aqui mais um tico de Jack, um teco de pó, um tapa na brenfa e um totó no bico da breja. Tico, teco, tapa e totó. Adoro essa língua, última flor do felácio, tão puta e bela, que sonora se desdobra em tanto pau pra toda obra” (p.57).

“Ni qui ela fumava o bamba eu tragava o careta, e vício-versa” (p.105).

Uma viagem
“Enquanto ouvia essa cascata que ia me afundando num estado de pré-catalepsia, dei de achar que o ácido me batia agora de um jeito bizarro para os padrões lisérgicos convencionais. As coisas e pessoas se destacavam com nitidez brutal umas das outras, feito pop-ups agressivos que não paravam de pipocar no meu campo visual, cada qual aspirando a assumir o primeiro plano. Pior é que tudo, um pé, um tigre no tapete, o zebu no banner, as ancas da Wyrma debaixo do sari, os peitinhos da Sossô sob a camiseta ainda úmida, a careca peniana do Melquíades, tudo chegava até mim carregado de pesadas e confusas simbologias, como se em outras encarnações eu tivesse de algum modo interagido na mais carnal intensidade com as pessoas e coisas ali presentes.
Embora os detalhes dessa interação tivessem se apagado da memória, isso tinha deixado seqüelas profundas que afloravam agora na crosta líqüida da minha consciência sob a forma de demandas e cobranças, acusações e mágoas, remorsos e ânsias, culpas e vergonhas que me assediavam num redemoinho de emoções vertiginosas. Eu vivia o aqui-agora como um angustiante ali-outrora, numa cadeia ininterrupta de déjà-vus. Todos os momentos já nasciam pretéritos. Me deu medo de voltar ao passado e por lá ficar pra sempre […]
O jeito era desejar-me um foda-se solitário e segurar aquela onda quietinho no meu canto, confiando que a piração teria um fim antes do derretimento total do meu psiquismo […]
Foquei de novo a Sossô em busca de alguma forma intuitiva de socorro. A pequena parecia singrar serena os mares interiores de sua própria viagem. Agarrei-me à sua presença levíssima tentando me manter à tona dos eventos. Sossô me parecia a cura de todos os males, a solução de todos os enigmas, menos de um único: ela própria. Foi quando comecei a sentir um plasma de sensualidade física a me subir da ponta dos dedos dos pés para as panturrilhas e coxas, e daí direto pros bagos e pra piroca, de onde se espalhava costas, barriga e peito acima, passando pela nuca até atingir a cabeça toda, por dentro e por fora, donde se derramava feito vapor de cálice de feiticeira corpo abaixo.
A visão da Sossô me trazia o sexo, e o sexo vinha me salvar - eis o mistério decifrado!” (p.89-91).

7 de maio de 2009

Espelhos

Eduardo Galeano, Uruguai, 2008

Trascrevo abaixo artigo publicado no jornal Página 12, da Argentina, no qual Eduardo Galeano fala sobre sobre sua mais nova obra, "Espelhos - Uma história quase universal".

O artigo original pode ser encontrado aqui. A tradução foi retirada daqui.

Paradoxo Andante

Cada dia, ao ler os jornais, assisto a uma aula de história.

Os jornais ensinam-me pelo que dizem e pelo que silenciam.

A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas. Talvez por isso os seus silêncios digam mais que as suas palavras e muitas vezes as suas palavras revelam, mentindo, a verdade.

Dentro em breve será publicado um livro meu chamado Espejos [Espelhos]. É algo assim como uma história universal, e desculpem o atrevimento. "Posso resistir a tudo, menos à tentação", dizia Oscar Wilde, e confesso que sucumbi à tentação de contar alguns episódios da aventura humana no mundo, do ponto de vista dos que não apareceram na foto.

Pode-se dizer que não se trata de factos muito conhecidos.

Resumo aqui alguns, apenas uns poucos.

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Quando foram desalojados do Paraíso, Adão e Eva mudaram-se para África, não para Paris.

Algum tempo depois, quando os seus filhos já se tinham lançado pelos caminhos do mundo, foi inventada a escrita. No Iraque, não no Texas.

Também a álgebra foi inventada no Iraque. Fundou-a Mohamed al Jwarizmi, há mil e duzentos anos, e as palavras algoritmo e algarismo derivam do seu nome.

Os nomes costumam não coincidir com o que nomeiam. No British Museum, por exemplo, as esculturas do Parténon chamam-se "mármores de Elgin", mas são mármores de Fídias. Elgin era o nome do inglês que as vendeu ao museu.

As três novidades que tornaram possível o Renascimento europeu, a bússola, a pólvora e a imprensa, tinham sido inventadas pelos chineses, que também inventaram quase tudo o que a Europa reinventou.

Os hindus souberam antes de todos que a Terra era redonda e os maias tinham criado o calendário mais exacto de todos os tempos.

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Em 1493, o Vaticano presenteou a América à Espanha e obsequiou a África negra a Portugal, "para que as nações bárbaras sejam reduzidas à fé católica". Naquele tempo, a América tinha quinze vezes mais habitantes que a Espanha e a África negra cem vezes mais que Portugal.

Tal como ordenara o Papa, as nações bárbaras foram reduzidas. E muito.

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Tenochtitlán, o centro do império asteca, era de água. Hernán Cortés demoliu a cidade pedra por pedra e, com os escombros, tapou os canais por onde navegavam duzentas mil canoas. Esta foi a primeira guerra da água na América. Agora, Tenochtitlán chama-se México DF. Por onde corria a água, correm agora os automóveis.

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O monumento mais alto da Argentina foi erguido em homenagem ao general Roca, que no século XIX exterminou os índios da Patagónia.

A avenida mais longa do Uruguai tem o nome do general Rivera, que no século XIX exterminou os últimos índios charruas.

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John Locke, o filósofo da liberdade, era accionista da Royal Africa Company, que comprava e vendia escravos.

No momento em que nascia o século XVIII, o primeiro dos bourbons, Felipe V, inaugurou o seu reinado assinando um contrato com o primo, o rei da França, para que a Compagnie de Guinée vendesse negros na América. Cada monarca ficava com 25 por cento dos lucros.

Nomes de alguns navios negreiros: Voltaire, Rousseau, Jesus, Esperança, Igualdade, Amizade.

Dois dos Pais Fundadores dos Estados Unidos desvaneceram-se na névoa da história oficial. Ninguém se recorda de Robert Carter nem de Gouverner Morris. A amnésia recompensou os seus actos. Carter foi a única personalidade eminente da independência que libertou os seus escravos. Morris, redactor da Constituição, opôs-se à cláusula que estabelecia que um escravo equivalia às três quintas partes de uma pessoa.

"O nascimento de uma nação" , a primeira super-produção de Hollywood, foi estreado em 1915, na Casa Branca. O presidente, Woodrow Wilson, aplaudiu-a de pé. Ele era o autor dos textos do filme, um hino racista de louvor ao Ku Klux Klan.

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Algumas datas:

Desde o ano 1234, e durante os sete séculos seguintes, a Igreja Católica proibiu que as mulheres cantassem nos templos. As suas vozes eram impuras, devido àquele caso da Eva e do pecado original.

No ano de 1783, o rei da Espanha decretou que não eram desonrosos os trabalhos manuais, os chamados "ofícios vis", que até então acarretavam a perda da fidalguia.

Até ao ano de 1986 foi legal o castigo das crianças, nas escolas da Inglaterra, com correias, varas e cacetes.

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Em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, em 1793 a Revolução Francesa proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A militante revolucionária Olympia de Gouges propôs então a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A guilhotina cortou-lhe a cabeça.

Meio século depois, outro governo revolucionário, durante a Primeira Comuna de Paris, proclamou o sufrágio universal. Ao mesmo tempo, negou o direito de voto às mulheres, por unanimidade menos um: 899 votos contra, um a favor.

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A imperatriz cristã Teodora nunca disse que era uma revolucionária, nem nada que se parecesse. Mas há mil e quinhentos anos o império bizantino foi, graças a ela, o primeiro lugar do mundo onde o aborto e o divórcio foram direitos das mulheres.

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O general Ulisses Grant, vencedor da guerra do Norte industrial contra o Sul escravagista, foi a seguir presidente dos Estados Unidos.

Em 1875, respondendo às pressões britânicas, respondeu:

- Dentro de duzentos anos, quando tivermos obtido do proteccionismo tudo o que ele nos pode proporcionar, também nós adoptaremos a liberdade de comércio.

Assim sendo, em 2075, o país mais proteccionista do mundo adoptará a liberdade de comércio.

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"Lootie", ("Saquezinho") foi o primeiro cão pequinês a chegar à Europa.

Viajou para Londres em 1860. Os ingleses baptizaram-no assim porque era parte do saque extorquido à China no fim das longas guerras do ópio.

Vitória, a rainha narcotraficante, tinha imposto o ópio a tiros de canhão. A China foi convertida num país de drogados, em nome da liberdade, a liberdade de comércio.

Em nome da liberdade, a liberdade de comércio, o Paraguai foi aniquilado em 1870. Ao final de uma guerra de cinco anos, este país, o único das Américas que não devia um centavo a ninguém, inaugurou a sua dívida externa. Às suas ruínas fumegantes chegou, vindo de Londres, o primeiro empréstimo. Foi destinado a pagar uma enorme indemnização ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai. O país assassinado pagou aos países assassinos pelo trabalho que tinham tido a assassiná-lo.

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O Haiti também pagou uma enorme indemnização. Desde que em 1804 conquistou a sua independência, a nova nação arrasada teve de pagar à França uma fortuna, durante um século e meio, para expiar o pecado da sua liberdade.

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As grandes empresas têm direitos humanos nos Estados Unidos. Em 1886, o Supremo Tribunal de Justiça estendeu os direitos humanos às corporações privadas, e assim continua a ser.

Poucos anos depois, em defesa dos direitos humanos das suas empresas, os Estados Unidos invadiram dez países, em diversos mares do mundo.

Então, Mark Twain, dirigente da Liga Anti-imperialista, propôs uma nova bandeira, com caveirinhas em vez de estrelas. E outro escritor, Ambroce Bierce, confirmou:

- A guerra é o caminho escolhido por Deus para nos ensinar geografia.

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Os campos de concentração nasceram em África. Os ingleses iniciaram a experiência, e os alemães desenvolveram-na. Depois disso, Hermann Göring aplicou na Alemanha o modelo que o seu pai tinha testado, em 1904, na Namíbia. Os mestres de Joseph Mengele tinham estudado, no campo de concentração da Namíbia, a anatomia das raças inferiores. As cobaias eram todas negras.

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Em 1936, o Comité Olímpico Internacional não tolerava insolências. Nas Olimpíadas de 1936, organizadas por Hitler, a selecção de futebol do Peru derrotou por 4 a 2 a selecção da Áustria, o país natal do Führer. O Comité Olímpico anulou o jogo.

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Não faltaram amigos a Hitler. A Rockefeller Foundation financiou investigações raciais e racistas da medicina nazi. A Coca-Cola inventou a Fanta, em plena guerra, para o mercado alemão. A IBM tornou possível a identificação e a classificação dos judeus, e essa foi a primeira façanha em grande escala do sistema de cartões perfurados.

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Em 1953, explodiu o protesto operário na Alemanha comunista.

Trabalhadores tomaram as ruas e os tanques soviéticos dedicaram-se a calar-lhes a boca. Então Bertolt Brecht sugeriu: Não seria mais fácil que o governo dissolvesse o povo e elegesse outro?

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Operações de marketing. A opinião pública é o target. As guerras vendem-se mentindo, tal como se vendem os carros.

Em 1964, os Estados Unidos invadiram o Vietname, porque o Vietname tinha atacado dois navios dos Estados Unidos no Golfo de Tonkin. Quando a guerra já tinha trucidado uma multidão de vietnamitas, o ministro da Defesa, Robert McNamara, reconheceu que o ataque de Tonkin não existira.

Quarenta anos depois, a história repetiu-se no Iraque.

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Milhares de anos antes da invasão norte-americana levar a civilização ao Iraque, nesta terra bárbara nasceu o primeiro poema de amor na história mundial. Na língua suméria, escrito no barro, o poema narrou o encontro de uma deusa e um pastor. Inanna, a deusa, amou nessa noite como se fosse mortal. Dumuzi, o pastor, foi imortal enquanto durou essa noite.

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Paradoxos andantes, paradoxos estimulantes:

O Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais belas esculturas da era colonial americana.

O livro de viagens de Marco Pólo, aventura da liberdade, foi escrito na prisão em Génova.

"Don Quixote de La Mancha", uma outra aventura da liberdade, nasceu na prisão de Sevilha.

Foram netos de escravos os negros que criaram o jazz, a mais livre das músicas.

Um dos melhores guitarristas de jazz, o cigano Django Reinhardt, só tinha dois dedos na sua mão esquerda.

Não tinha mãos Grimod de Reynière, o grande mestre da cozinha francesa. Com garfos escrevia, cozinhava e comia.

17 de fevereiro de 2009

O velho e o mar

Ernest Hemingway, 1952, EUA

O livro narra a saga de Santiago, um velho pescador que, incomodado com a maré de azar que o faz acumular 84 dias sem fisgar nada em seu anzol, resolve se aventurar sozinho em alto mar, em busca do peixe que mudará sua sorte.

"O que aconteceu é que acabou a minha sorte. Mas quem sabe? Talvez hoje ela volte. Cada dia é um novo dia. É melhor ter sorte. Mas eu prefiro fazer as coisas sempre bem. Então, se a sorte me sorrir, estou preparado" (p.35).

E como pode-se imaginar, o destino recompensou aquele que ousou transpor os limites. O animal mordeu a isca. Santiago estava agora diante do maior desafio de sua vida, um colossal peixe nunca antes visto por ele, experiente pescador. Nesse momento, começa o opressor embate entre um velho homem e a poderosa natureza.

"'A sua escolha inicial fora se esconder na águas escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e traições. A minha escolha fora ir procurá-lo onde jamais ninguém ousaria ir.' Sim, onde jamais alguém ousara ir. E agora estavam ligados um ao outro e assim se encontravam desde o meio-dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a outro"
(p.54).

Mas Santiago não é qualquer homem. É um herói. Não tem superpoderes, simplesmente é capaz de unir intelecto e determinação em alquimia que produz uma força sobre-humana.

"- Peixe - falou ele - não o largo enquanto viver"
(p.56).

"'Por que teria saltado? Quase que diria que veio à tona d'água só para mostrar-me como é grande. Agora já sei, seja lá como for', pensou o velho. 'Gostaria de lhe poder mostrar que espécie de homem sou eu. Mas, nesse caso, ele veria a cãibra que tenho. É melhor que ele julgue que valho mais para ter mais possibilidades do meu lado. Gostaria de ser aquele peixe e trocaria de bom grado a minha vontade e a minha inteligência para ter tudo o que ele tem'"
(p.67).

No mar, em plena luta aflita, o pescador se vê assolado pela solidão. Mas também encontra companhia.

"As primeiras estrelas mostravam-se no céu. Não sabia bem os nomes das estrelas, mas as conhecia e sabia que dentro de pouco tempo apareceriam todas e teria o conforto da companhia daquelas amigas tão distantes"
(p.76).

Em sua aventura, Santiago é um exemplo de superação, de esforço e paixão por seus objetivos. Sua história nos mostra a capacidade humana de desafiar e de sobrepujar as piores adversidades. E é exatamente nesse desafio que reside sua vitória, sua redenção, mesmo que a seguir a natureza cobre seu preço final.

"'Você está me matando, peixe', pensou o velho pescador. 'Mas tem o direito de fazê-lo. Nunca vi nada mais bonito, mais sereno ou mais nobre do que você, meu irmão. Venha daí e mate-me. Para mim tanto faz quem mate quem, por aqui'"
(p. 93).

"'Além disso', pensou, 'tudo mata tudo de uma maneira ou de outra. Pescar mata-me tal como me faz viver'"
(p.106).

Uma história de viver e de lutar, porque a vida só pode se desenrolar se estiver acompanhada do risco:

"- Repouse bem, pequena ave - aconselhou o velho. - Depois siga viagem e arrisque-se como qualquer homem, pássaro ou peixe"
(p.58).

Uma história do mar, esse misterioso universo que nos assombra e nos fascina:

"O velho pensava sempre no mar como sendo
la mar, que é como lhe chamam em espanhol quando verdadeiramente o querem bem. Às vezes aqueles que o amam lhe dão nomes vulgares, mas sempre como se fosse uma mulher. Alguns dos pescadores mais novos, aqueles que usam bóias como flutuadores para as suas linhas e têm barcos a motor, comprados quando os fígados dos tubarões valiam muito dinheiro, ao falarem do mar dizem el mar, que é masculino. Falam do mar como de um adversário, de um lugar ou mesmo de um inimigo. Entretanto, o velho pescador pensava sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que concedesse ou negasse grandes favores; mas se o mar praticasse selvagerias ou crueldades era só porque não podia evitá-lo. 'A lua afeta o mar tal como afeta as mulheres', refletiu o velho" (p.32).

3 de fevereiro de 2009

Romeu e Julieta

William Shakespeare, 1595-6, Inglaterra

O que dizer sobre esta famosíssima obra da literatura universal? Diria eu que trata-se de uma história de amor? Não é tudo... Diria que versa sobre a alma humana? Poderia... Entretanto, qualquer coisa que disser será precária se comparada à complexidade e riqueza do texto shakesperiano que, assim como as grandes obras do gênio humano, oferece-nos uma gama infinda de interpretações, níveis variados de leitura e uma profusão de sentimentos despertados. Shakespeare é um acontecimento e será tanto melhor aproveitado se for vivido em sua inteireza.

Essa pequena seleção de belíssimos trechos é mais do que suficiente para ratificar meu argumento:

O ódio dá muito
trabalho por aqui; mas mais, o amor.
Então, amor brigão! Ó ódio amoroso!
És tudo, sim; do nada foste criado
desde o princípio. Leviandade grave,
vaidade séria, caos imano e informe
de belas aparências, chumbo leve,
fumaça luminosa, chama fria,
saúde doente, sono sempre esperto,
que não é nunca o que é. Eis aí o amor
que eu sinto e que me causa apenas dor.
(Romeu - Ato I, Cena I)

O amor é dos suspiros a fumaça;
puro, é fogo que os olhos ameaça;
revolto, um mar de lágrimas de amantes...
Que mais será? Loucura temperada,
fel ingrato, doçura refinada.
(Romeu - Ato I, Cena I)

Mas o amor, em tamanha extremidade,
sabe fazer da dor felicidade.
(Prólogo - Ato II)

Meu inimigo é apenas o teu nome.
Continuarias sendo o que és, se acaso
Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio?
Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto,
nem parte alguma que pertença ao corpo.
Sê outro nome. Que há num simples nome?
O que chamamos rosa, sob uma outra
designação teria igual perfume.
Assim Romeu, se não tivesse o nome
de Romeu, conservara a tão preciosa
perfeição que dele é sem esse título.
Romeu, risca teu nome, e, em troca dele,
que não é parte alguma de ti mesmo,
fica comigo inteira.
(Julieta - Ato II, Cena II)

Essas violentas alegrias têm fim também violento,
falecendo no tempo, como a pólvora
e o fogo, que num beijo se consomem.
O mel mais delicioso é repugnante
por sua própria delícia, confundindo
com seu sabor o paladar mais ávido.
Tem, pois, moderação, que o vagaroso,
como o apressado, atrasam-se do pouso.
(Frei Lourenço - Ato II, Cena VI)

Mais rico o sentimento em conteúdo
do que em palavras, sente-se orgulhoso
com a própria essência, não com os ornamentos.
(Julieta - Ato II, Cena VI)

Ainda e sempre em lágrimas? Que é isso?
Sempre a chover? Num corpo pequenino,
o mar imitar queres, barco, ventos?
Pois teus olhos, a que de mar eu chamo,
fluxo e refluxo mostram, só de lágrimas;
teu corpo é o barco nesse mar salgado;
teus suspiros, os ventos, que em conflito
permanente com as lágrimas se encontram
e que hão de soçobrar-te o frágil corpo
tão maltratado pela tempestade,
se não fizer a tempo calmaria.
(Capuleto - Ato III, Cena V)

Quão doce deve ser o amor possuído
se assim tão venturoso é sua sombra!
(Romeu - Ato V, Cena I)

Triunfe o amor, e eis tudo resolvido.
(Julieta - Ato IV, Cena I)

20 de novembro de 2008

Os trabalhadores do mar

Victor Hugo, 1866, França

A obra é um riquíssimo repertório de sentidos sobre a relação entre o homem e o mar, com histórias de viagens e de territórios distantes. Narrativa épica que explora o oceano para também navegar pela alma humana, seus medos, anseios, potências e misérias.

O livro nos apresenta Gilliatt, um homem simples que, sozinho, luta contra o mar, contra os elementos e contra as possibilidades, suplantando a fome, a sede, o frio e a solidão, tudo em nome do amor. A Durande, o barco ao qual vai em socorro, e Deruchette, a jovem pela qual está apaixonado, são, respectivamente, cenário e idéia através dos quais Gilliatt transcende todos os limites humanos. Gilliatt é um gigante, um herói, um Ulisses, um "Jó Prometeu".

Se de um lado temos o mar, com toda sua grandeza e com todo assombro que pode provocar, do outro temos o homem, finito e precário, mas disposto a lutar. São dois oceanos juntos nessa fascinante história escrita no século XIX.

Transcrevo algumas passagens brilhantes:

O mistério das coisas
"Nada mais perturbador do que ver manobrar a difusão das forças no insondável e no ilimitado. Procuram-se os fins. O espaço sempre em movimento, a água infatigável, as nuvens que parecem afadigadas, o vasto esforço obscuro, toda essa convulsão é um problema. Que faz este perpétuo tremor? Que constróem estes ventos? Que levantam estes abalos? Em que se ocupam os choques, os soluços, os gritos? Que faz todo esse tumulto? O fluxo e refluxo dessas questões é eterno como a maré" (p.230).

Natureza, homem e máquina
"O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama navegação.
Uma vontade no mecanismo faz contrapeso ao infinito. Também o infinito encerra um mecanismo. Os elementos sabem o que fazem e para onde vão. Não há força cega. Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerário.
Enquanto se não descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem" (p.146).

Vida e morte
"Toda natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras [...] Todas as criaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcros" (p.320).

Viver é arriscar
"Nenhum pássaro ousaria chocar, nenhum ovo ousaria abrir, nenhuma flor ousaria desabrochar, nenhum seio ousaria aleitar, nenhum coração ousaria amar, nenhum espírito ousaria voar, se pensasse nas sinistras emboscadas do abismo" (p.321).

Viver é imprevisível
"O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catástofres e as felicidades entram e saem como personagens inesperadas. Têm a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropelo. A consciência é a linha reta, a vida é o turbilhão. O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis. A sorte não tem tem a arte das transições. Às vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervalo de uma peripécia a outra e o laço de ontem a hoje" (p.379).

A força da impotência
"Ser impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a natureza, é na sua impotência que o homem acha o ponto de apoio, a oração.
O homem socorre-se do próprio medo; pede auxílio ao pavor; a ansiedade aconselha o ajoelhar.
A oração, enorme força própria da alma, é da mesma espécie que o mistério. A oração dirige-se à magnanimidade das trevas; a oração contempla o mistério com os olhos da sombra, e, diante da fixidez poderosa desse olhar súplice, sente-se um desarmamento possível no ignoto.
Essa possibilidade entrevista é já uma consolação" (p.343-344).

Corpo e alma
"O corpo humano é talvez uma simples aparência, escondendo a nossa realidade e condensando-se sobre a nossa luz ou sobre a nossa sombra. A realidade é a alma. A bem dizer, o rosto é uma máscara. O verdadeiro homem é o que está debaixo do homem. Mais de uma surpresa haveria se pudesse vê-lo agachado e escondido debaixo da ilusão que se chama carne" (p.43).

A perseverança transcende o ordinário
"O olho do homem é feito de modo que se lhe vê por ele a virtude. A nossa pupila diz que quantidade de homem há dentro. Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciências picam o olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que nada há que ame no coração. Quem ama quer, e aquele que quer relampeja e cintila. A resolução enche os olhos de fogo; admirável fogo que se compõe da combustão dos pensamentos tímidos. Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: - Perseverança. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória. Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtém o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não inclui o parar. Da queda sai a ascenção. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes. Perecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória vencida que se chama o martírio" (p.255).

26 de abril de 2008

Escravidão e universo cultural na colônia (não-ficção)

Eduardo França Paiva, 2001, Brasil

Logo na orelha da obra, um breve texto do historiador francês, Serge Gruzisnky, faz interessante apresentação da pesquisa elaborada por Eduardo França Paiva. Copio um trecho:

“Como os homens e as mulheres submetidos à escravidão viviam essa condição? Qual podia ser sua margem de manobra? Qual era o lugar dos forros nessa sociedade, de que maneira e por qual preço conquistavam sua liberdade? Quais eram as relações dos escravos e dos forros com os brancos, donos de escravos, quer fossem ricos ou pouco fortunados?
Para responder a estas perguntas e romper os clichês que ainda embaraçam (obstruem) as nossas memórias e historiografias, Eduardo França Paiva explora incansavelmente os arquivos mineiros do século XVIII. [...] Ao mergulhar no laboratório sociocultural extraordinário que constituiu Minas Gerais, o leitor descobrirá uma sociedade complexa, móvel, cheia de contradições, no seio da qual negros e mulatos, homens e mulheres, aparecem integralmente como protagonistas da história do século XVIII”.

Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789 é um trabalho referência da nova historiografia sobre a escravidão no Brasil. A obra lança um novo olhar para a sociedade escravista, enriquecendo nossa compreensão sobre as relações sociais envolvidas nesse contexto. Longe de querer negar a escravidão ou de querer torná-la um palco de amenidades, o objetivo de Eduardo França Paiva é, como já adiantou Gruzisnky, sair do lugar comum e perceber que tanto escravos como senhores foram sujeitos da história na qual viveram e que a dicotomia dominante/dominado explica muito pouco dessa história.

“É através de legados ricos como os deixados nesses papéis [os testamentos e inventários pesquisados pelo autor] que se torna possível, por exemplo, o ataque ao que venho chamando de imaginário do tronco, tão arraigado no entendimento sobre a escravidão brasileira. Isto é, ao imaginário sobre a escravidão e os escravos, construído sobre mitos, exageros e versões ideologizadas ou moldadas pelo pragmatismo político. Versões que de forma caricatural condenam a posteriori os escravos ao trabalho desumano e intenso ou ao castigo corporal, como se a vida desses agentes históricos, com exceção dos que se rebelavam, fugiam ou se aquilombavam, se restringisse a essas balizas. No entanto, os libertos testadores demonstraram em seus relatos que o tronco e os outros instrumentos de coerção física e moral não tiveram, pelo menos em áreas urbanizadas do setecentos, emprego tão intenso e corriqueiro quanto se acredita generalizadamente hoje. Este tipo de violência fora substituído por outros, como as restrições à ascensão social dos forros e as interdições de variada natureza impostas indistintamente a cativos, a libertos e a seus descendentes. Em muitas outras ocasiões o controle violento dos mancípios foi substituído por acordos que interessavam a proprietários e a propriedades e que, freqüentemente, reverteram-se em alforrias individuais e coletivas. E não se tratava de agrupamentos reduzidos numericamente. Ao contrário, refiro-me à maior aglomeração de escravos e de libertos entre as capitanias do Brasil e uma das mais importantes, se não a mais importante, de todo o Novo Mundo escravista, no século XVIII” (p. 24-25).

Sobre uma classe intermediária urbana nas Minas do século XVIII
“O setecentos mineiro é realmente um marco especial para todo o império português. A riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mãos, a miséria fazia parte da vida cotidiana dos núcleos urbanos e de áreas rurais, mas conformara-se uma classe intermediária urbana que tornava aquela sociedade diferenciada. A importância desse grupo provinha diretamente da dimensão quantitativa atingida por ele, assim como de seu poder de influência. Além disso, seus integrantes produziam riqueza, pagavam impostos e eram consumidores pertinazes. Já o sabia bem o Conde das Galveas, governador das Minas, em 1732, quando advertia que o trabalho dos forros rendia impostos necessários ao rei. Exatamente os forros, pois eram eles que constituíam parcela respeitável dessa camada intermediária” (p.26).

Uma economia diversificada
“Livres, libertos e escravos compunham a sociedade que se instalara no que antigamente era chamado de sertões. [...] Mas não era apenas isso. Eles compunham, todos, embora com importância diferenciada, o mercado, o grande, dinâmico e diverso mercado emergido nas Minas do setecentos. Através dessa enorme demanda comercial foram estreitados os contatos entre a Colônia e longínquas praças: Índia, Europa, África. Às Minas chegaram tecidos, pedraria e contas, louças, panelas e utensílios domésticos, calçados, chapéus, luvas, lenços, meias e ornamentos variados, além de certos alimentos e bebidas de proveniência diversificada” (p.26-27).

Uma sociedade complexa
“Chegou, também, gente oriunda de muitos lugares distantes para aí se estabelecer. Os encontros pessoais, materiais e culturais foram inevitáveis e corriqueiros. Resultaram na aproximação entre universos geograficamente afastados, em hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriações, em adaptações e em sobreposição de representações e de práticas culturais. Por conta disso o estudo pretende contribuir para reflexões historiográficas que abarquem extensão ampla” (p.27).

A pesquisa
Eduardo França Paiva estuda, ao todo, 859 testamentos e inventários de homens e mulheres originários de várias partes do Brasil e do mundo ou mesmo nascidos em Minas. O grupo é dividido entre homens livres, homens forros, mulheres livres e mulheres forras.

Entre as conclusões que o autor chegou após a análise desses documentos está o fato de que, mesmo sendo a ascensão social um privilégio dos brancos, o enriquecimento dos negros libertos era possível. Destaque para o sucesso da mulher nesse cenário:

“A ascensão social era privilégio, portanto, de alguns brancos e isso era garantido pelas leis e ordenações que vigoraram na América portuguesa. [...] Mas, quanto ao enriquecimento de libertos e de seus descendentes, isto não foi possível interditar. O fenômeno era muito mais freqüente, claro, nas regiões mais urbanizadas. A possibilidade de ascensão econômica foi concretizada por vários desses antigos escravos e por seus filhos e netos nascidos livres, embora as grandes fortunas coloniais permanecessem entre alvas mãos. [...] Entre os que lograram enriquecer, as mulheres constituíram a maioria, assim como formavam, também, a parcela mais numerosa dos alforriados” (p.67).

Liberdade e preconceito
“Proprietários de escravos, às vezes enriquecidos, libertos do cativeiro, mas sempre estigmatizados pela cor da pele, que denunciava o passado de submissão, a origem presa a grilhões e a indiscutível condição de inferioridade intelectual e cultural. Os forros, mesmos os que experimentavam ascensão econômica, não escapavam da discriminação cultivada abertamente ou de maneira camuflada pela sociedade colonial. De toda forma, o fato de terem se libertado e de terem formado um enorme contingente populacional – algo próximo a 120.000 indivíduos, no final do século XVIII, apenas nas Minas – já é o suficiente para ajuntá-los em agrupamento distinto” (p.68). Para efeito de comparação, a população de escravos nesse período era de cerca de 170.000.

O imaginário do tronco
O autor nos relata a distorcida compreensão da sociedade escravista que vem imperando no senso comum e que passou a ser combatida pela historiografia brasileira produzida a partir da década de 1980:

“A imagem de violência física empregada incessantemente sobre os escravos transformava as relações escravistas coloniais em contatos sempre antagônicos, marcados pela desconfiança, pela revolta e pelo medo. Não obstante, reconheciam-se os cativos como agentes históricos [...] apenas quando se revoltavam, fugiam ou matavam, desconsiderando qualquer outra estratégia de resistência menos evidente que essas. As escravas, sempre, eram exploradas sexualmente e quase nada faziam além do serviço doméstico e da reprodução biológica. A família, entendida sempre a partir de um modelo europeu e cristão, não existia entre os escravos no Brasil, e o mais comum era haver um ou mais escravos reprodutores nas senzalas, responsáveis pela fecundação das fêmeas. Os libertos, quando mencionados, sempre ganhavam e jamais conquistavam suas cartas de alforria. [...] Essas e tantas outras 'verdades' sobre a escravidão tanto povoaram e continuam povoando o imaginário brasileiro” (p.85-86).

A família escrava
Contrariando essas verdades distorcidas, Eduardo França Paiva nos mostra que a formação de famílias entre escravos era um acontecimento bastante comum no seio da sociedade mineira dos setecentos. Na verdade, essa prática, era interessante tanto para senhores como para cativos.

“Sem dúvida alguma, a formação de famílias escravas foi estratégia aproveitada tanto pelos escravos quanto pelos senhores. Se ela representava proteção e solidariedade para os primeiros, também significava maior e melhor controle sobre a escravaria e sobre a sociedade escravista colonial para os segundos” (p.150).

De acordo com o autor, a freqüente presença de famílias escravas promoveu uma relativa estabilidade das relações cotidianas entre proprietários e propriedades. Ela explicaria uma baixa referência a fugas, castigos e torturas, e também estaria relacionada à longevidade dos escravos em Minas Gerais.

As alforrias nas Minas
E foram essas formas flexíveis de convívio entre senhores e cativos que favoreceram acordos que resultavam em alforrias. O autor descreve o interessante processo da coartação, muito usado como meio para a liberdade, que consistia na compra da alforria através do pagamento em parcelas e durante determinado tempo, ao fim do qual a liberdade era alcançada. De acordo com França Paiva, o processo não era regulamentado pela legislação em vigor, mas tratava-se de prática e de direito costumeiros.

“Contrapondo-se, portanto, à idéia de que as alforrias dependiam apenas da boa vontade dos proprietários, os processos de coartação demonstram bem como os maiores interessados, os escravos, conseguiam intervir nessas histórias. Eles ajudaram a moldá-las, assim como participaram efetivamente na construção da própria sociedade escravista colonial” (p.168).

Uma ressalva importante
“Isso não significa, evidentemente, que as relações escravistas nas Minas ou no Brasil tenham sido doces, amenas e não tenham experimentado tensões, conflitos e desacordos. O exagero e o estereótipo, de todas as formas como são empregados, trazem grande prejuízo ao conhecimento” (p.156).