8 de novembro de 2006

A Montanha Mágica

Thomas Mann, 1924, Alemanha

Uma das obras mais influentes do século XX, o livro é um exemplo clássico da literatura que os alemães classificam como Bildungsroman (romance de aprendizagem ou formação). Segundo a Wikipédia, Bildungsroman é o tipo de romance no qual é exposto, de forma pormenorizada, o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência, até um estágio de maior maturidade.

Na avaliação do autor, A Montanha Mágica é um livro para se ler 2 vezes. E esse é um argumento muito forte para que se evite analisar a obra somente com uma primeira leitura. Portanto: paro por aqui.

Mas copio o comentário do próprio Thomas Mann sobre sua criação. Trata-se de um extrato de uma conferência que ele apresentou aos estudantes da Universidade de Princeton, em maio de 1939.

"O que devo eu então dizer sobre o próprio livro (Montanha Mágica) e ainda por cima, como deve ser lido? O começo é uma exigência muito arrogante, a dizer que se deva lê-lo duas vezes. É claro que essa exigência é retirada imediatamente para o caso de que na primeira vez se tenha ficado entediado. A arte não deve ser nenhum trabalho escolar nem dificuldade, nenhuma ocupação contre coeur, mas sim deve alegrar, entreter e animar; e aquele sobre o qual uma obra não exerce esse efeito, então este deve deixar a obra de lado e voltar-se para outra. Mas quem chegou uma vez até o final com a “Montanha Mágica”, então eu aconselho a lê-la mais uma vez, pois seu feitio particular, seu caráter como composição traz consigo que o prazer do leitor aumentará e se aprofundará da segunda vez, - como se deve conhecer uma música, para poder gozá-la de acordo. Não casualmente utilizei a palavra composição, a qual se costuma reservar à música. A música sempre influenciou meu trabalho formando fortemente meu estilo. Os poetas são, na maioria das vezes, outra coisa; no fundo eles são pintores ou gráficos ou escultores ou arquitetos deslocados ou outra coisa qualquer. Quanto a mim, eu pertenço aos músicos entre os poetas. O romance sempre foi para mim uma sinfonia, um trabalho de contraponto, um tecido de temas no qual as idéias têm o papel de motivos musicais. [...] E a isso se refere a minha exigência arrogante de ler duas vezes a “Montanha Mágica”. Podemos reconhecer e apreciar adequadamente o complexo de relações entre música e idéias que ela forma, quando já conhecemos sua temática e somos capazes de interpretar não só para trás, mas também para diante a palavra-chave que alude a um símbolo.

Com isso eu volto a aludir a algo que já toquei, a saber, ao mistério do tempo com o qual o romance lida de diversas maneiras. Ele é um romance de tempo num duplo sentido: uma vez historicamente, tentando esboçar o quadro interior de uma época, o tempo do pré-guerra europeu, depois porque o puro tempo mesmo é o assunto dele, que ele trata não apenas como experiência de seu herói, mas sim também através de si mesma. O livro é sobre aquilo mesmo que ele narra; e, descrevendo o encantamento hermético fora do tempo de seu herói, ambiciona, por seu meio artístico, a abolição do tempo [...]. Mas, para trazer à plena congruência sua ambição de ser sempre ao mesmo tempo conteúdo e forma, ser e aparência, e ser sempre aquilo do qual se trata e fala, esta ambição vai mais longe. Ela se refere ainda a um outro tema fundamental, o tema da elevação, à qual é dado o epíteto alquímico. Os senhores se lembram: o jovem Hans Castorp é um herói simples, um filhinho de família hamburguesa e engenheiro comum. No febril hermetismo da montanha mágica, essa matéria simples passa por uma elevação que o torna capaz de aventuras morais, espirituais e sensuais, das quais nunca teria sonhado no mundo que é sempre designado ironicamente como planície. Sua história é a história de uma elevação, mas ela é elevação também em si mesma, como história e narração. Ela trabalha com os expedientes do romance realista, mas não é, ela sempre ultrapassa o real, elevando-o simbolicamente e tornando-o transparente para o espiritual e o ideal. Já no tratamento de suas figuras, ela o faz que para o sentimento dos leitores. Todas são mais do que aparentam; elas são expoentes, representantes e mensageiros de regiões espirituais, princípios e mundos.

O livro cresceu espacial e espiritualmente no caminho da elevação, muito além do que o autor originalmente planejou com ele. A short story tornou-se o volumoso romance de dois tomos - uma desventura que não teria acontecido, se a “Montanha Mágica” tivesse permanecido aquilo que muita gente no início via e ainda hoje nela vê: uma sátira à vida do sanatório para tuberculosos. Ela causou, a seu tempo, não pouca sensação no mundo da medicina. Nela causou parcialmente adesão, parcialmente indignação, uma pequena tempestade nos jornais especializados. Mas a crítica da terapia do sanatório é seu primeiro plano, um dos primeiros planos do livro, cuja característica é ter um grande segundo plano. A advertência doutrinária dos riscos morais da cura pelo repouso e de todo o ambiente estranho fica, na verdade, por conta do senhor Settembrini, o racionalista e humanista retórico que é uma figura entre outras, uma figura humorística-simpática, às vezes também o bocal do autor, mas de maneira alguma o próprio autor. Para este, morte e doença e todas as aventuras macabras pelas quais ele deixa seu herói passar são justamente o meio pedagógico pelo qual se alcança uma imensa elevação e impulso do herói simples para além de sua situação original. [...] O que ele aprende a compreender é que toda saúde mais elevada deve ter passado pelas profundas experiências da doença e da morte, assim como o conhecimento do pecado é uma condição prévia da salvação. "Para a vida”, disse Hans Castorp uma vez para Madame Chauchat, “para a vida há dois caminhos: um é o usual, direto e ajuizado. O outro é mau, ele passa pela morte e este é o caminho genial.” Essa concepção de doença e morte como uma passagem necessária para o saber, para a saúde e para a vida torna a “Montanha Mágica” um romance de iniciação (initiation story).

Eu não inventei essa denominação. A crítica ma deu à mão posteriormente e eu faço uso dela, uma vez que eu devo lhes falar sobre a “Montanha Mágica”. Eu me deixo ajudar com prazer pela crítica alheia, pois é um erro pensar que o autor mesmo seja o melhor conhecedor e comentador de sua própria obra. Ele é, talvez, enquanto ainda trabalha e está nela. Mas uma obra consumada, que já ficou para trás, se torna cada vez mais algo separado dele, estranho, na qual e sobre a qual outros, com o tempo, estão muito melhor informados do que ele, de modo que podem recordar-lhe muita coisa que ele esqueceu ou talvez até mesmo nunca tenha sabido claramente.

A gente tem, em geral, a necessidade de ser lembrado de si. Ninguém está, de modo algum, de posse de si mesmo. Nossa autoconsciência é, quanto a isto, fraca, uma vez que nós, de modo algum e nem sempre, temos o nosso ser integralmente presente. Apenas em momentos de rara claridade, concentração e visão geral nós temos conhecimento verdadeiro de nós. E a modéstia de pessoas notáveis, que surpreende muitas vezes, tem seu motivo em boa parte nisso: que elas geralmente sabem pouco sobre si mesmas, não estão conscientes de si mesmas e se sentem, com razão, como pessoas comuns".