6 de abril de 2008

História & Livro e Leitura (não-ficção)

André Belo, 2002, Brasil

“Este livro é uma reflexão em torno da história do livro. Não se trata, porém, de apresentar aqui ao leitor uma descrição de como foi escrito e feito o livro ao longo dos tempos [...] Trata-se antes de falar do livro como um objeto que tem uma história e de mostrar como essa história tem sido contada pelos historiadores” (p.15), nos informa o autor.

Nos dois primeiros capítulos da obra, André Belo faz um pouco da história da história do livro, “vendo como ela se prolongou numa história da leitura e como ela se tornou num terreno de diálogo entre diferentes áreas científicas e acadêmicas” (p.15). O atual momento da pesquisa na área é abordado no terceiro e último capítulo, no qual o autor revela que “a investigação atual se projeta bem para além das suas fronteiras tradicionais, limitadas ao livro impresso e à história moderna européia, abrangendo diferentes regiões geográficas, cronologias, suportes da escrita e meios de comunicação” (p.15).

O impacto da tipografia
De acordo com André Belo, o debate sobre a importância da invenção da tipografia nasceu com a publicação da obra A revolução da cultura impressa, da historiadora norte-americana Elisabeth Eisenstein.

“[...] mais do que um mero agente de uma difusão alargada do escrito e da imagem, a imprensa foi responsável, segundo Eisenstein, por alterações qualitativas nas operações intelectuais associadas à leitura e à compreensão dos textos. [...] Para Eisenstein, o objeto impresso define uma cultura original, qualitativamente diferente da cultura manuscrita que existia anteriormente” (p.23).

Na argumentação de André Belo, as idéias de Eisenstein davam continuidade, no meio historiográfico, às teses defendidas pelo teórico da cultura e da comunicação de massas Marshal McLuhan.

“Em A Galáxia de Gutenberg (MCLUHAN, 1977/1962), esse autor colocou em oposição diferentes modos de comunicação ao longo da história das sociedades: na Antiguidade e na Idade Média existiu baseada no manuscrito e na oralidade; nesse ambiente, a leitura em voz alta e a audição coletiva eram o modo de transmissão e recepção dos discursos; a ela seguiu-se uma cultura do livro impresso, em que a troca de idéias se fez predominantemente por meio da leitura individual, feita em silêncio, em que a visão veio substituir a audição e a voz como sentido dominante na comunicação. Segundo esse autor, a invenção de Gutenberg constituiu uma ruptura fundamental na história da cultura, dando origem a um novo modo de percepção, a do 'homem tipográfico'. As teses de McLuhan, que tinham por trás a idéia fundamental de que o 'meio [de comunicação] é a mensagem', foram desenvolvidas no preciso momento em que a televisão, o rádio e o telefone se afirmavam como meios de comunicação de massa. Para o autor, o seu aparecimento marcava o início do fim da galáxia de Gutenberg, isto é, o fim da era do predomínio da leitura visual e a entrada numa nova constelação da comunicação em que, por meio da convivência permanente entre texto, imagem e som, os sentidos associados à oralidade recuperariam importância” (p.24).

Mas André Belo apresenta argumentos que representam importantes ressalvas à possível dicotomia entre uma era do manuscrito e uma outra, a era do impresso.

“A idéia de que existiu uma ruptura entre a era do manuscrito e a era do impresso tem sido combatida por vários autores, com destaque para [...] Roger Chartier. [...] Chartier fala também de uma 'cultura do impresso' nascida com a invenção de Gutenberg. No entanto, ela não deve ser colocada em oposição a uma cultura do manuscrito, antes deve ser considerada sua herdeira. Se a imprensa representa uma alteração fundamental nas capacidades técnicas de reprodução dos textos, ela perde seu caráter revolucionário quando comparada com outras mudanças consideradas por Chartier tão ou mais decisivas, como é o caso do aparecimento do livro com a forma que conhecemos ainda hoje, verificado entre os séculos II e IV da era cristã. Antes da tipografia, com efeito, o livro era escrito e copiado à mão, era normalmente menos portátil do que os livros atuais, mas já era um códice, isto é, um conjunto de cadernos costurados uns aos outros e encadernados. Na opinião de Chartier, o que permaneceu no livro depois de Gutenberg foi mais importante do que o que mudou: os sinais que facilitam a orientação do leitor no interior do livro (enumeração de páginas, de colunas ou linhas) e no interior de cada página (títulos de capítulos e letras iniciais ornamentadas) nasceram no tempo do livro manuscrito, o mesmo acontecendo com os índices alfabéticos ou por assuntos. A imprensa não criou um objeto novo e não obrigou a novos gestos da parte do leitor, ao contrário do que aconteceu com o aparecimento do códice (CHARTIER, 1994). Ela também não alterou, pelo menos inicialmente, o conteúdo dos textos disponíveis: os Padres da Igreja, os clássicos latinos e gregos, os textos religiosos ou laicos de autores consagrados foram os primeiros livros impressos” (p.24-23).

O sucesso do códice quase nos faz esquecer, prossegue o autor, que o livro teve outros formatos – rolos de papiro ou de pergaminho (cuja materialidade implicava num tipo de leitura diverso da do códice, que facilita a navegação dentro do texto); tabuinhas de argila – e que a escrita teve outros suportes – tecidos, conchas, cerâmica, marfim, folhas de palmeira.

“Cada uma dessas diferentes formas de livro implicou, ao longo de uma história já com alguns milênios, diversos modos de escrever e ler. Obrigou ao uso de um determinado tipo de instrumento, a uma certa postura corporal, a um certo modo de organizar o texto (ou a imagem), dependendo da textura do suporte ou de seu formato” (p.27).

Técnica x Cultura
Nessa altura, André Belo propõe as seguintes questões: “qual a relação entre as mudanças tecnológicas e as mudanças culturais? Podemos dizer que são sobretudo as inovações técnicas que produzem transformações no modo de pensar, de ler e de conhecer ou, pelo contrário, que são necessidades culturais e sociais que dão origem ao aparecimento de novas tecnologias de difusão do saber?” (p.28).

“Chartier, uma vez mais, generaliza: a invenção da tipografia não revolucionou a forma do livro, nem seu conteúdo, nem a maneira de ler. Não podemos dizer que as inovações na técnica de reprodução dos textos produzam, por si só, revoluções na relação com o escrito. Na longa história do livro, as grandes alterações foram produzidas por transformações culturais e sociais mais profundas. [...] contra o que considera um 'determinismo tecnológico', Chartier afirma que as técnicas não existem para além do que os seus produtores e utilizadores fazem delas (CHARTIER, 2000, p. 31). No Ocidente, a imprensa, como inovação no modo de reproduzir os textos, necessitou de várias outras condições para se afirmar, a começar pela disponibilidade de uma matéria-prima fundamental como o papel. Contrariamente, na China do século XI e na Coréia do século XIII, os caracteres móveis, em terracota e em metal já eram conhecidos, mas a escala de sua utilização permaneceu reduzida por razões políticas e culturais (Idem, 1994). Na primeira metade do século XIX, a imprensa conheceu sua primeira industrialização, com a introdução da tipografia mecânica a vapor e da máquina de papel contínuo. Mas as tiragens dos livros e periódicos permaneceram modestas diante das novas capacidades produtivas. Só na segunda metade do século XIX se verificou o aparecimento da grande tiragem nos jornais e outras publicações de baixo custo, trazendo consigo importantes novidades no número de leitores atingidos e nos tipos de gêneros publicados. Isto não aconteceu apenas por razões técnicas, mas também por causa de fatores econômicos e decisões editoriais, por sua vez impossíveis de obter sucesso sem o apoio de outros fatores culturais, como o desenvolvimento da escolarização (Idem, 1995)” (p.29 e 30).

No entanto, alerta André Belo, essa perspectiva de Chartier apresenta um inconveniente, qual seja, o risco de diminuirmos o impacto social que a imprensa gerou e sua capacidade para ser um agente de mudança. Em nenhuma hipótese, a importância do surgimento da imprensa pode ser desconsiderada.

“Mesmo que o livro manuscrito tenha permanecido durante bastante tempo como modelo seguido pelo livro impresso, a nova técnica de reprodução dos textos multiplicou claramente as possibilidades de difusão geográfica das obras relativamente à cópia manuscrita. E também as suas capacidades de conservação: a multiplicação de uma obra em centenas ou milhares de exemplares garantia, bem melhor do que o manuscrito, a sua sobrevivência à passagem do tempo” (p.30 e 31).

O que é a história do livro e da leitura?
“Para a revista Book History, [...] a história do livro abrange 'toda a história da comunicação escrita: a criação, a disseminação, os usos do manuscrito e do impresso em qualquer suporte, incluindo livros, jornais periódicos, manuscritos e outros objetos impressos de vida efêmera'. O leque de interesses da revista estende-se assim aos seguintes domínios: 'história social, cultural e econômica da autoria, publicação, impressão, artes gráficas, direitos de autor, censura, comércio e a distribuição de livros, bibliotecas, competências de leitura e escrita, crítica literária, hábitos de leitura, teoria da recepção literária'” (p. 37).

“No entender de Robert Darnton, [...] o objetivo da história do livro é 'compreender como as idéias foram transmitidas através da imprensa e como a exposição à palavra impressa afetou o pensamento e o comportamento da humanidade durante os últimos quinhentos anos” (p.38).

“Donald F. McKenzie [...] define a especialidade como uma 'sociologia dos textos'. Estudar o passado do livro é estudar o seu conteúdo considerando toda a vasta gama de realidades sociais que os textos envolvem e com as quais interagem, em cada momento de sua produção, transmissão e consumo (MCKENZIE, 1986, p. 6-7)” (p. 38).

“Por fim, para o Institut d'Historie du Livre, um órgão francês que reúne várias instituições ligadas ao livro, entre universidades, museus e bibliotecas, o objeto alargado de uma história do livro é a comunicação escrita. Trata-se de uma área totalmente interdisciplinar em que dialogam a história, a sociologia, a antropologia e as ciências da linguagem e da informação” (p.38-39).

Uma síntese
“Essas definições são razoavelmente convergentes num aspecto essencial: da história do livro atual faz parte muito mais do que o simples estudo dos procedimentos técnicos de escrita e reprodução de um livro até ele chegar ao leitor [...] Mais do que apenas o livro como objeto material, essa história compreende a comunicação e todos os processos sociais, culturais e literários que os textos afetam e envolvem. Ela integra um conjunto de disciplinas específicas de tal maneira vasto que é impossível resumi-lo aqui” (p.39).

O leitor reescreve o livro
André Belo nos apresenta também o problema inovador da pesquisa sobre as diferentes modalidades de consumo do livro pelos leitores, abordagem que trouxe entendimentos inovadores como o fato de que a leitura é (e sempre foi) uma prática acompanhada socialmente (ou seja, não é uma prática solitária, sofrendo condicionamentos) e a existência de uma pluralidade de direções de leitura:

“O leitor, de certa maneira, reescreve o texto que lê. Por isso, a página impressa não é uma letra morta: ela é o lugar onde se produz o encontro, sempre diferente, entre a palavra já escrita e os novos sentidos que os leitores lhe vão dando. Como escreveu Jorge Luís Borges, uma literatura distingue-se de uma outra menos pela letra do texto do que pela forma como ela é lida. Essa idéia ajusta-se perfeitamente a uma interrogação histórica: enquanto o texto permanece uma unidade fixa, os leitores em diferentes épocas vão-se apropriando dele de forma plural; como afirmou Levenson, citado por Bordieu, 'um livro muda pelo fato de não mudar enquanto o mundo muda' (BORDIEU e CHARTIER, 1985, p. 236)” (p.52-53).

Mais adiante, depois de elaborar um apanhado de possíveis fontes de pesquisa e problematizar questões metodológicas no campo da história do livro e da leitura, André Belo faz uma interessante observação sobre o papel do leitor no universo dos textos: “O sentido desse texto, de qualquer texto, depende sempre da leitura que dele será feita” (p.103).

Nenhum comentário: