15 de abril de 2010

Pornopopéia

Reinaldo Moraes, 2008, Brasil

Pornopopéia é uma odisseia pelos atraentes, estranhos e perigosos caminhos da satisfação imediata. Zeca, o protagonista, é um cineasta guiado pelo princípio do prazer; e foda-se a autopreservação. Refém de seus impulsos, vive à caça de pessoas e situações que saciem sua interminável fome de gozo. Em seu cardápio, sexo, comida, poética e estados alterados da mente, servidos isolados ou combinados livremente. E quanto mais de tudo, melhor.

“A alma […] é um organismo arcaico com três órgãos: miolos, estômago e genitália” (p.20), afirma Zeca, exibindo o axioma que fundamenta sua caótica teoria sobre a vida.

Em todo o livro, o escatológico funciona como um marcador dos limites do humano, como uma constante lembrança da finitude da existência e um incentivo para que a vida seja orientada às inúmeras possibilidades orgásticas que oferece. “Toda gente se iguala na morte e na bosta, já deve ter dito algum materialista amargurado. Em outras palavras, o destino dá muitas voltas. O intestino também” (p.365).

Para Zeca, a vida é pra ser vivida, bebida, aspirada, metida e fudida, e, de preferência, “tudo ao mesmo tempo agora” (obrigado Titãs). É se jogar no abismo do gozo, num mergulho em busca do centro do planeta do prazer.

Vísceras sim, pois somos feito delas e por elas. Mas não só, porque através delas também flui a energia do sublime, da poesia, da estética de tudo que pode ser sentido, experimentado. Sobrevivência e transcendência – está aí um binômio que explica muito do nosso frenético personagem (e de todos nós, obviamente). Em suas palavras: “E tudo era poesia, tudo sacanagem, tudo alegria” (p.155).

Pornopopéia é um livro dono de um ritmo vibrante, riquíssimo em significados e recheado com belíssimos neologismos, muita poética e reflexão sobre boa parte daquelas coisas "malucas" que a cabeça humana se dispõe a pensar. Leitura recomendadíssima!

E pra não perder o costume, segue a transcrição de alguns trechos da obra:

Sinapses
“O momento pedia uma cabeça aberta, e todos os buracos da minha estavam escancarados pelo bendito ácido” (p.81).

“O que tá pegando é esse oco na cabeça que sempre me acomete depois duma viagem de ácido. É um oco diferente dessa vez, como uma série de ôcos embutidos um dentro do outro, até o oco nuclear infinitesimal onde se abriga o vazio compacto da alma inexistente” (p.20).

“Nisso que dá passar tanto tempo metido consigo mesmo. O sujeito cogita, cogita, e regurgita metafísica barata” (312).

Identificação
“Adoro essa mulher. Ela é linda, ela é alegre, ela não presta. Nem eu” (p.240).

Vida adulta
“No fim do primeiro ano de casório, porém, o convívio já rolava escada abaixo. Azedumes, resmungos, rancores, ameaças, porradas, diluvianas choradeiras por parte dela, traições de ambas as partes, tédio sem fim, era essa a pauta do nosso casório. Nada de muito original, se for ver. Apenas a experiência partilhada de desencanto e confusão que alguns chamam de vida adulta” (p.433).

Palavras
“Então, vamo vê aqui mais um tico de Jack, um teco de pó, um tapa na brenfa e um totó no bico da breja. Tico, teco, tapa e totó. Adoro essa língua, última flor do felácio, tão puta e bela, que sonora se desdobra em tanto pau pra toda obra” (p.57).

“Ni qui ela fumava o bamba eu tragava o careta, e vício-versa” (p.105).

Uma viagem
“Enquanto ouvia essa cascata que ia me afundando num estado de pré-catalepsia, dei de achar que o ácido me batia agora de um jeito bizarro para os padrões lisérgicos convencionais. As coisas e pessoas se destacavam com nitidez brutal umas das outras, feito pop-ups agressivos que não paravam de pipocar no meu campo visual, cada qual aspirando a assumir o primeiro plano. Pior é que tudo, um pé, um tigre no tapete, o zebu no banner, as ancas da Wyrma debaixo do sari, os peitinhos da Sossô sob a camiseta ainda úmida, a careca peniana do Melquíades, tudo chegava até mim carregado de pesadas e confusas simbologias, como se em outras encarnações eu tivesse de algum modo interagido na mais carnal intensidade com as pessoas e coisas ali presentes.
Embora os detalhes dessa interação tivessem se apagado da memória, isso tinha deixado seqüelas profundas que afloravam agora na crosta líqüida da minha consciência sob a forma de demandas e cobranças, acusações e mágoas, remorsos e ânsias, culpas e vergonhas que me assediavam num redemoinho de emoções vertiginosas. Eu vivia o aqui-agora como um angustiante ali-outrora, numa cadeia ininterrupta de déjà-vus. Todos os momentos já nasciam pretéritos. Me deu medo de voltar ao passado e por lá ficar pra sempre […]
O jeito era desejar-me um foda-se solitário e segurar aquela onda quietinho no meu canto, confiando que a piração teria um fim antes do derretimento total do meu psiquismo […]
Foquei de novo a Sossô em busca de alguma forma intuitiva de socorro. A pequena parecia singrar serena os mares interiores de sua própria viagem. Agarrei-me à sua presença levíssima tentando me manter à tona dos eventos. Sossô me parecia a cura de todos os males, a solução de todos os enigmas, menos de um único: ela própria. Foi quando comecei a sentir um plasma de sensualidade física a me subir da ponta dos dedos dos pés para as panturrilhas e coxas, e daí direto pros bagos e pra piroca, de onde se espalhava costas, barriga e peito acima, passando pela nuca até atingir a cabeça toda, por dentro e por fora, donde se derramava feito vapor de cálice de feiticeira corpo abaixo.
A visão da Sossô me trazia o sexo, e o sexo vinha me salvar - eis o mistério decifrado!” (p.89-91).

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