27 de março de 2008

História & História Cultural (não-ficção)

Sandra Jatahy Pesavento, 2003, Brasil

A proposta de Sandra Pesavento é apresentar uma panorâmica sobre a História Cultural, uma nova forma de abordagem da História que se consolidou no final do século XX.

“Se a História Cultural é chamada de Nova História Cultural”, afirma a autora logo na introdução da obra, “é porque está dando a ver uma nova forma de a História trabalhar a cultura. Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou uma História Intelectual, ou ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, a estudar as grandes correntes de idéias e seus nomes mais expressivos. Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo” (p.15).

Segundo ela, não estamos mais no tempo de certezas normativas, de leis e modelos que regem o social. A busca de verdades absolutas dá lugar à construção de versões narrativas. A História se relativiza:

“Uma era de dúvida, talvez, de suspeita, por certo, na qual tudo é posto em interrogação, pondo em causa a coerência do mundo. Tudo o que foi, um dia, contado de uma forma, pode vir a ser contado de outra. Tudo o que hoje acontece terá, no futuro, várias versões narrativas. [...] Mudou o mundo, mudou a história, mudaram os historiadores” (p.15-16).

Mudanças epistemológicas
Sandra Pesavento dedica um capítulo inteiro para os conceitos que fundamentam esse novo olhar da História e que reorientam a postura do historiador.

O primeiro desses conceitos é o da representação. De acordo com a autora, as representações seriam “formas integradoras da vida social, construídas pelos homens para manter a coesão do grupo e que propõem como representação do mundo”.

“Expressas por normas, instituições, discursos, imagens e ritos, tais representações formam como que uma realidade paralela à existência dos indivíduos, mas fazem os homens viverem por elas e nelas. [...] As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade” (p.39).

O segundo conceito abordado por Sandra é o de imaginário, que entende-se ser “um sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (p.43).

“O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito. [...] para além de sua dimensão histórica, o imaginário é capacidade humana para representação do mundo, com o que lhe confere sentido ontológico” (p.43).

A abordagem da autora nos faz perceber que o que chamamos de mundo real é indissociável do mundo imaginário, que nenhuma sociedade vive fora do imaginário. O mundo imaginário seria o mais real dos mundos, pois é por ele e nele que as pessoas efetivamente conduzem sua existência.

“[...] tudo aquilo que o homem considera como sendo a realidade é o próprio imaginário. [...] a sociedade só existe no plano do simbólico porque pensamos nela e a representamos, desta ou daquela maneira. [...] o terreno do imaginário abrange todo o campo da experiência humana” (p. 44-45).

Outro conceito abordado por ela é o de narrativa, que está relacionado ao novo entendimento da História. “Contemporaneamente, ela é entendida como a narrativa do que aconteceu um dia, entendimento que marca uma diferença significativa com as concepções anteriores”, informa a historiadora.

“Sim, a História teria como meta atingir a verdade do acontecido, mas não como mímesis. Entre aquilo que teve lugar um dia, em um tempo físico já transcorrido e irreversível, e o texto que conta o que aconteceu, há uma mediação. [...] A figura do narrador – no caso, o historiador, que narra o acontecido – é a de alguém que mediatiza, que realiza uma seleção dos dados disponíveis, que tece relações entre eles, que os dispõe em uma seqüência dada e dá inteligibilidade ao texto” (p. 50).

A relativização do alcance de uma verdade absoluta por parte da História introduz, segundo a autora, a concepção do conceito de ficção.

“Nada é simplesmente colhido do passado pelo historiador, como uma história dada. Tudo o que se conhece como História é uma construção da experiência do passado [...] A História inventa o mundo, dentro de um horizonte de aproximação com a realidade [...] Nesta medida, a História constrói um discurso imaginário e aproximativo sobre aquilo que teria ocorrido um dia, o que implica dizer que faz uso da ficção” (p. 53).

“O historiador é aquele que, a partir dos traços deixados pelo passado, vai em busca da descoberta do como aquilo teria acontecido, processo este que envolve urdidura, montagem, seleção, recorte, exclusão. Ou seja, o historiador cria o passado e [...] a História é uma forma de ficção, tal como a Literatura. [...] A ficção é quase histórica, assim como a História é quase uma ficção”, (p.53-54).

Sandra Pesavento trabalha ainda o conceito de sensibilidades, as quais seriam o “cerne daquilo que o historiador do passado pretende atingir”.

“As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos. Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar no passado, à própria energia da vida” (p.57).

A autora arremata: “Representação e imaginário, o retorno da narrativa, a entrada em cena da ficção e a idéia das sensibilidades levam os historiadores a repensar não só as possibilidades de acesso ao passado, na reconfiguração de uma temporalidade, como colocam em evidência a escrita da história e a leitura dos textos” (p.59).

Sobre correntes e campos de pesquisa
Segundo Pesavento, são três as correntes trilhadas pela História Cultural, a partir desse novo patamar epistemológico e metodológico. São elas: a corrente do Texto; a corrente da Micro-História; e a corrente da Nova História Política.

“A primeira delas seria aquela do texto, pensando a escrita e a leitura. Seus pressupostos de análise decorrem daqueles conceitos já apresentados, ou seja, o da compreensão da História como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado, e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção dos textos” (p.69).

“A micro-história, como o próprio nome indica, realiza uma redução da escala de análise, seguida da exploração intensiva de um objeto de talhe limitado. Esse processo é acompanhado de uma valorização do empírico, exaustivamente trabalhado ao longo de extensa pesquisa de arquivo” (p.72).
“Os elementos do micro, recolhidos pelo historiador, são como a ponta de um iceberg que aflora e que permite cristalizar algo e atingir outras questões que não se revelam a um primeiro olhar” (p.73).

“Às vezes chamada de Nova História Política, essa postura resulta do endosso, pelos historiadores do político, dos pressupostos epistemológicos que presidem a análise na História Cultural. Imaginário, representação, a produção e recepção do discurso historiográfico reformularam a compreensão do político” (p.75).

De acordo com a historiadora, tais correntes se traduzem em alguns campos temáticos de pesquisa, em torno dos quais se agregam os trabalhos de investigação, quais sejam: o campo das cidades; o campo História e Literatura; o campo das imagens; o campo das identidades; o campo do presente; e o campo da memória.

Ótima leitura
Além de abordar conceitos, métodos e correntes dessa disciplina que marca uma grande virada na História, o livro apresenta os principais autores e movimentos precursores da História Cultural e ainda traz um breve panorama da historiografia brasileira nessa área.

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